Sempre Fui a Forte: Quando a Força se Torna Solidão

— Por amor de Deus, Teresa, não chores agora. Tu sempre deste conta de tudo — disse o António, sem sequer levantar os olhos do jornal.

Aquelas palavras cortaram-me mais do que qualquer discussão. Senti-me pequena, invisível, como se a minha dor fosse um capricho, uma fraqueza indesejada. Oiço o tic-tac do relógio da cozinha, misturado com o cheiro do café frio e o silêncio pesado entre nós. Sempre fui a Teresa forte, a que nunca vacila. Mas naquele momento, só queria ser vista.

Desde miúda que me diziam: “A Teresa é desenrascada, nunca precisa de ninguém.” Cresci em Vila Nova de Gaia, numa casa pequena mas cheia de vozes. A minha mãe, Maria do Céu, era costureira e o meu pai, Joaquim, trabalhava nas obras. Tinha dois irmãos mais novos, o Luís e a Sofia, e era eu quem fazia de mãe quando a nossa estava a trabalhar até tarde. Aprendi cedo a engolir o choro e a pôr um sorriso para os outros.

Quando casei com o António, achei que finalmente teria alguém para dividir o peso do mundo. Mas a vida não é como nos filmes. Ele era bom homem, trabalhador, mas sempre distante. “Homem não chora”, dizia ele ao nosso filho Miguel. E eu? Eu também não podia chorar.

Os anos passaram entre panelas ao lume, roupas para passar e contas para pagar. Fui mãe, depois avó. A casa enchia-se de risos aos domingos, mas também de discussões abafadas. A minha filha Ana sempre foi rebelde. “Mãe, tu não percebes nada!”, gritava ela na adolescência. O Miguel fechava-se no quarto com os livros e só saía para comer.

No trabalho, era igual. Fui empregada de balcão numa padaria durante vinte anos. Os clientes vinham desabafar comigo: “Ó Teresa, o meu marido anda impossível!” ou “A minha filha não quer estudar…” Eu ouvia tudo, dava conselhos, sorria. Ninguém perguntava como eu estava.

Lembro-me de uma noite em particular. O António chegou tarde, cheirava a vinho e estava irritado com o patrão. A Ana tinha discutido comigo por causa das notas baixas e o Miguel estava trancado no quarto. Sentei-me na varanda com uma manta e chorei baixinho para ninguém ouvir. Oiço ainda hoje as palavras da minha mãe: “A vida é dura, mas tu és mais dura ainda.” Mas será justo ter de ser sempre dura?

O tempo passou e os filhos saíram de casa. Fiquei só eu e o António, dois estranhos a partilhar silêncios. Os netos vieram trazer alguma alegria, mas também trabalho: “Mãe, podes ficar com eles esta semana? Tenho tanto que fazer…” E eu dizia sempre sim.

No Natal passado, fiz tudo sozinha: comprei presentes, preparei o bacalhau, decorei a casa. No fim da noite, sentei-me na cozinha a olhar para a pilha de pratos sujos. Senti um vazio tão grande que me faltou o ar. Fui ter com o António à sala:

— Preciso de ajuda — disse-lhe, com lágrimas nos olhos.

Ele olhou-me como se eu tivesse dito algo absurdo.

— Tu? Precisas? Oh Teresa, tu resolves tudo! Por favor… — E voltou-se para a televisão.

Foi aí que percebi: ninguém me via realmente. Era como se fosse um móvel da casa — útil, mas invisível.

Comecei a afastar-me aos poucos. Deixei de ligar todos os dias à Ana. Quando o Miguel precisava de boleia para os miúdos, disse-lhe que não podia. No trabalho voluntário na paróquia, pedi para ficar só uma vez por semana.

A família estranhou:

— Estás doente? — perguntou-me a Sofia.
— Não — respondi — só estou cansada.

Ninguém insistiu muito.

Numa tarde chuvosa de fevereiro, sentei-me no café da esquina com a minha amiga Helena. Ela olhou para mim e disse:

— Tu tens direito ao teu cansaço, Teresa. Não tens de ser sempre a forte.

Chorei ali mesmo, sem vergonha. Pela primeira vez em muitos anos senti-me compreendida.

Comecei a escrever num caderno todas as coisas que me magoavam e todas as vezes que quis pedir ajuda e não pedi. Descobri que havia uma Teresa dentro de mim que nunca conheci: frágil, carente, humana.

O António começou a notar a diferença:

— O que se passa contigo? Estás diferente…
— Estou só a aprender a cuidar de mim — respondi-lhe.

Ele não entendeu logo. Houve discussões:

— Agora és egoísta? — atirou ele um dia.
— Não — respondi — agora sou só humana.

A Ana veio falar comigo:

— Mãe, desculpa se nunca reparei em ti…

Abraçámo-nos em silêncio.

Hoje já não faço tudo sozinha. Aprendi a dizer não sem culpa e sim só quando quero mesmo ajudar. Ainda sou forte — mas já não sou feita de pedra.

Às vezes pergunto-me: quantas Teresas há por aí, escondidas atrás de sorrisos e silêncios? Será que ser forte é mesmo nunca pedir colo?