Sempre Estive do Lado Errado: A Verdade Sobre a Minha Sogra
— És tu a Mariana? — A voz dela cortou o silêncio da entrada como uma faca. O olhar da Dona Emília era duro, quase gélido, e eu, com as mãos suadas, tentei sorrir. — Sim, sou eu… — respondi, mas a minha voz saiu trémula, quase infantil. O Miguel, ao meu lado, limitou-se a encolher os ombros e sussurrou: — A minha mãe é assim mesmo… não ligues.
Mas eu liguei. Desde esse primeiro dia, senti-me uma intrusa naquela casa. Dona Emília nunca me dirigia um sorriso, nunca me perguntava nada sobre a minha vida ou sobre o meu trabalho no hospital. Quando eu tentava ajudar na cozinha, ela afastava-me com um olhar de desdém. Miguel dizia que era feitio dela, que sempre fora reservada desde que o pai dele morrera num acidente de carro, anos antes de nos conhecermos.
O tempo passou e casei-me com Miguel. Mudámo-nos para um pequeno apartamento em Benfica, e as visitas à sogra eram sempre tensas. Eu fazia questão de ir, por respeito, mas cada vez que atravessava aquele corredor escuro sentia o peso do julgamento dela. O Miguel parecia não se importar; dizia que ela era amarga porque a vida lhe tinha sido madrasta. Mas eu via nela uma mulher fria, incapaz de dar ou receber afeto.
Os anos foram passando e o nosso casamento começou a mostrar fissuras. O Miguel trabalhava horas intermináveis no escritório de advogados do tio e chegava sempre tarde. Eu sentia-me sozinha, mas não tinha coragem de lhe dizer. Quando finalmente engravidei da nossa filha, Sofia, pensei que tudo mudaria. Mas não mudou. Miguel ficou ainda mais ausente e Dona Emília continuava distante.
Lembro-me do dia em que levei a Sofia pela primeira vez à casa da avó. Dona Emília olhou para ela como se fosse um bibelô frágil e disse apenas: — Tem os olhos do pai. — Não houve um sorriso, nem um gesto de ternura. Saí dali com lágrimas nos olhos, sentindo-me derrotada.
Com o tempo, comecei a evitar as visitas. Miguel não insistia; parecia aliviado por não ter de enfrentar o silêncio pesado da mãe. Mas algo dentro de mim se revolvia: porque é que aquela mulher não gostava de mim? O que é que eu lhe tinha feito?
A resposta só chegou muitos anos depois, quando o Miguel morreu subitamente de um enfarte aos 43 anos. O mundo desabou sobre mim. Fiquei sozinha com a Sofia adolescente e uma dor insuportável no peito. No funeral, Dona Emília apareceu vestida de preto, mais magra do que nunca. Não chorou uma lágrima; ficou imóvel ao lado do caixão, os olhos fixos no vazio.
Depois do enterro, fui até à casa dela para lhe levar comida e ver se precisava de alguma coisa. Pela primeira vez em vinte anos, ela deixou-me entrar sem protestar. Sentei-me à mesa da cozinha enquanto ela aquecia água para o chá.
— O Miguel era tudo o que eu tinha — disse ela de repente, sem me olhar nos olhos.
— Eu sei… — respondi baixinho.
— Não sabes — murmurou ela. — Ninguém sabe o que ele era…
Fiquei em silêncio. Pela primeira vez, senti pena dela.
— Ele era difícil… — continuou Dona Emília, com a voz embargada. — Desde pequeno… sempre foi assim… duro, impaciente… como o pai dele.
Olhei para ela, surpresa.
— O pai dele? Nunca falaste dele…
Ela suspirou fundo.
— Não havia muito para dizer. Era violento… batia-me… batia no Miguel também. E eu… eu nunca consegui protegê-lo.
Senti um nó na garganta. Nunca ninguém me tinha contado aquilo.
— O Miguel nunca me disse nada disso…
— Claro que não — disse ela amargamente. — Os homens desta família aprendem cedo a esconder as coisas feias.
O silêncio caiu sobre nós como uma manta pesada. Pela primeira vez vi Dona Emília como uma mulher ferida, não como uma inimiga.
Nos meses seguintes, comecei a visitá-la mais vezes. Levava-lhe sopa, ajudava-a com as compras, sentávamo-nos juntas a ver novelas na televisão. Aos poucos, ela foi-se abrindo comigo.
— Sabes… eu invejava-te — confessou um dia. — Tinhas coragem para sair de casa, trabalhar, ter amigos… Eu nunca tive isso.
— Mas sempre me trataste como se eu fosse uma ameaça…
Ela baixou os olhos.
— Tinha medo que me tirasses o Miguel… Ele era tudo o que me restava depois daquela vida com o pai dele.
Chorei nesse dia, abraçada a ela pela primeira vez em vinte anos.
A Sofia começou também a visitar a avó e entre as duas nasceu uma cumplicidade inesperada. Vi Dona Emília sorrir pela primeira vez quando a neta lhe mostrou as fotografias da escola.
Mas nem tudo foi fácil. A dor do passado estava sempre presente nas pequenas coisas: um prato partido na cozinha fazia Dona Emília estremecer; um grito mais alto da Sofia fazia-a encolher-se no sofá. Percebi então que há feridas que nunca cicatrizam completamente.
Um dia encontrei uma caixa antiga no armário dela: cartas do marido, fotografias rasgadas, um diário onde Dona Emília escrevia sobre os dias em que pensou fugir mas ficou por causa do filho pequeno. Li aquelas páginas com lágrimas nos olhos e percebi finalmente: toda a minha vida julguei mal aquela mulher.
Quando contei à Sofia tudo o que tinha descoberto sobre o passado da avó, ela abraçou-me e disse:
— Mãe, às vezes só vemos aquilo que queremos ver…
Hoje, passados três anos desde a morte do Miguel, sinto-me mais próxima da Dona Emília do que nunca estive do meu próprio marido. Aprendi a perdoar e a pedir perdão. E percebi que muitas vezes estamos tão presos às nossas mágoas que não conseguimos ver o sofrimento dos outros.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas são destruídas por silêncios e julgamentos precipitados? E vocês? Já estiveram do lado errado sem saber?