Sempre em Segundo Plano: Quando o Meu Companheiro Vive Para a Família Dele

— Outra vez, Rui? — perguntei, tentando conter as lágrimas enquanto ele calçava os sapatos à pressa, o telemóvel ainda encostado ao ouvido. — Não podes, por uma noite, ficar comigo?

Ele desviou o olhar, como se a culpa lhe pesasse nos ombros. — A minha mãe está mal, Inês. Diz que não consegue respirar bem. O meu pai está em pânico. Eu volto rápido, prometo.

Promete sempre. E eu fico sempre aqui, sentada no sofá, com o jantar a arrefecer e o silêncio a crescer à minha volta. Já nem me lembro da última vez que jantámos juntos sem interrupções. O Rui é o homem que amo, mas parece que nunca sou prioridade. A família dele é um poço sem fundo de problemas: a mãe hipocondríaca, o pai ansioso, a irmã mais nova que nunca saiu de casa e faz birras de adolescente aos trinta anos.

Lembro-me do início, quando tudo parecia possível. Conheci o Rui numa festa de amigos em Lisboa. Ele fez-me rir como ninguém, dançámos até às tantas e, naquela noite, senti que tinha encontrado alguém diferente. Mas logo percebi que havia uma sombra na vida dele: a família. No início achei bonito, até admirável. Ele era dedicado, atencioso com os pais, sempre pronto a ajudar a irmã com os trabalhos da faculdade ou a ir buscar medicamentos à farmácia. Só que, com o tempo, percebi que essa dedicação era uma prisão — para ele e para mim.

— Inês, não sejas injusta — dizia-me muitas vezes. — Eles precisam de mim. Não têm mais ninguém.

Mas eu também precisava dele. Precisava de alguém que me ouvisse quando o trabalho me deixava de rastos, quando sentia saudades da minha mãe no Porto ou quando só queria partilhar um filme no sofá. Em vez disso, aprendi a jantar sozinha, a adormecer com o som da televisão para não ouvir o vazio do quarto.

A situação piorou quando fomos viver juntos. Achei que seria diferente, que finalmente teríamos o nosso espaço. Mas a campainha tocava quase todos os dias: ora era a mãe dele com uma dor nova, ora o pai com um problema no carro, ora a irmã com um ataque de ansiedade porque discutiu com o namorado. O Rui largava tudo — trabalho, planos comigo, até compromissos importantes — para correr para eles.

Uma noite, depois de mais uma discussão por causa disso, sentei-me na varanda e chorei baixinho. Senti-me egoísta por querer exclusividade, mas também injustiçada por nunca ser escolhida. Liguei à minha melhor amiga, a Joana.

— Inês, tu não podes continuar assim — disse ela. — Tu existes! Tens direito à tua felicidade.

Mas como é que se compete com uma família? Como é que se pede ao homem que ama para escolher entre nós e as pessoas que lhe deram tudo?

Os meus pais sempre foram presentes mas independentes. Aprendi cedo a resolver os meus problemas sozinha. Talvez por isso me custe tanto perceber esta dependência quase doentia da família do Rui. Uma vez tentei falar com ele sobre terapia familiar.

— Achas mesmo que eles iam aceitar? — respondeu ele, quase ofendido. — Eles não são malucos!

E eu calei-me. Mais uma vez.

Os meses passaram e comecei a sentir-me invisível na minha própria casa. O Rui chegava tarde, cansado e irritado. Às vezes nem falávamos durante o jantar. Outras vezes discutíamos por coisas pequenas: quem ia às compras, quem limpava a casa. Mas no fundo era sempre sobre o mesmo — eu queria ser vista.

No Natal passado, planeámos passar uns dias só os dois em Évora. Reservei um hotel bonito, organizei tudo ao pormenor. Na véspera da viagem, a irmã dele ligou a chorar porque tinha tido um ataque de pânico. O Rui cancelou tudo sem sequer me perguntar.

— Desculpa, Inês… Eu não posso deixá-la assim.

Fui para o quarto e fechei a porta à chave. Senti uma raiva surda misturada com tristeza. Porque é que nunca sou suficiente? Porque é que tudo o resto vem sempre antes de nós?

No trabalho comecei a render menos. Os colegas perguntavam se estava tudo bem; eu sorria e dizia que sim. Mas por dentro sentia-me cada vez mais sozinha.

Uma noite, depois de mais um episódio igual aos outros — desta vez foi o pai dele que caiu na rua e precisou de ir ao hospital — decidi confrontá-lo.

— Rui, eu não aguento mais isto! Eu amo-te, mas não posso continuar a viver assim! Eu também preciso de ti! — gritei-lhe pela primeira vez.

Ele ficou calado durante muito tempo. Depois sentou-se ao meu lado e chorou como nunca o tinha visto chorar.

— Eu sei… Eu sei que te estou a perder… Mas não consigo deixá-los sozinhos…

Nesse momento percebi que ele estava tão preso quanto eu. Que talvez nunca tivesse aprendido a pôr limites porque sempre lhe disseram que era ele quem tinha de salvar toda a gente.

Pensei em sair de casa naquela noite. Arrumar as minhas coisas e voltar para o Porto, para junto da minha mãe e dos meus irmãos. Mas fiquei ali sentada ao lado dele, os dois em silêncio.

Os dias seguintes foram estranhos: falávamos pouco, evitávamos tocar no assunto. Até que um dia recebi uma mensagem da mãe dele:

— Inês, desculpa se te estamos a incomodar tanto… O Rui faz tudo por nós porque tem um coração enorme…

Senti-me ainda pior. Agora era eu a má da fita? A egoísta?

Procurei ajuda numa psicóloga. Comecei a perceber que não era errado querer ser prioridade na vida de alguém. Que amor também é escolha diária e compromisso mútuo.

Numa das sessões perguntei à psicóloga:

— E se ele nunca conseguir mudar?

Ela sorriu tristemente:

— Então tens de decidir se consegues viver sempre em segundo plano…

Hoje escrevo estas palavras sem saber qual será o meu futuro com o Rui. Amo-o profundamente mas sei que mereço mais do que migalhas de atenção entre crises familiares intermináveis.

Será egoísmo querer ser escolhida? Ou será coragem perceber quando é hora de partir? E vocês… já se sentiram assim alguma vez?