Sempre disse que não tinha talento: Até ao dia em que peguei num pincel e senti que era o meu caminho

— Maria, outra vez a sonhar acordada? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da manhã. Eu tinha 12 anos e olhava pela janela, imaginando mundos onde eu era alguém especial. Mas ali, em Vila Nova de Gaia, eu era só a Maria, filha da Dona Lurdes e do Senhor António, a rapariga que nunca se destacava em nada.

Sempre ouvi dizer que talento era coisa de gente escolhida. Na escola, as minhas notas eram medianas. Na aula de Educação Visual, tremia só de pensar que a professora me chamasse para mostrar o meu desenho. As minhas mãos suavam, o lápis escorregava, e os meus desenhos pareciam sempre cinzentos, tímidos, como se tivessem vergonha de existir. “Maria, tens de te esforçar mais”, diziam. Mas como é que se esforça para ser alguém que não se sente capaz?

O tempo passou. Cresci a acreditar que não tinha talento para nada. Quando terminei o secundário, nem pensei em seguir artes. Fui para Contabilidade porque era seguro, porque era o que os meus pais queriam. “Assim arranjas trabalho”, dizia o meu pai, com aquele olhar cansado de quem já viu demasiado da vida.

Aos 25 anos, casei com o Rui. Ele era bom rapaz, trabalhador, mas também ele carregava os sonhos mortos pelo peso das contas e das obrigações. Tivemos dois filhos, a Inês e o Tiago. A minha vida tornou-se uma rotina: acordar cedo, preparar pequenos-almoços, levar as crianças à escola, trabalhar oito horas num escritório sem janelas, voltar para casa, fazer jantar, ajudar nos trabalhos de casa, adormecer exausta.

Às vezes olhava-me ao espelho e não reconhecia a mulher que via. Onde estava aquela Maria que sonhava acordada? Onde estavam as cores?

Uma noite, depois de um dia particularmente difícil — o Tiago tinha feito birra no supermercado e a Inês chorava porque não queria tomar banho — sentei-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá. O Rui estava no sofá a ver futebol. Senti-me invisível. Peguei num papel e numa caneta e comecei a desenhar distraidamente. Linhas tortas, círculos imperfeitos. Mas naquele momento, senti uma paz estranha.

No dia seguinte, passei pela papelaria do bairro e comprei um bloco de folhas e um conjunto de lápis de cor baratos. Escondi-os na gaveta da mesa da cozinha. Todas as noites, quando todos dormiam, desenhava. No início eram só rabiscos. Depois comecei a tentar copiar flores do quintal da minha mãe. As cores começaram a aparecer timidamente.

Um sábado de manhã, a minha mãe apareceu lá em casa sem avisar. Apanhou-me a desenhar na cozinha.
— O que é isso, Maria? — perguntou desconfiada.
— Nada mãe… só uns desenhos.
Ela olhou para mim como se eu tivesse feito algo errado.
— Não tens mais nada para fazer? Olha para esta casa! — apontou para a loiça por lavar.
Senti-me envergonhada. Guardei tudo rapidamente e fui lavar os pratos.

O Rui também não entendia.
— Para que é isso agora? Não tens tempo nem para ti — resmungava.
Mas eu continuava. Era como respirar depois de anos debaixo de água.

Um dia, a Inês entrou na cozinha enquanto eu pintava uma paisagem do Douro.
— Mãe! Que bonito! — exclamou com os olhos brilhantes.
O coração bateu mais forte. Pela primeira vez alguém via beleza no que eu fazia.

Comecei a pintar mais vezes. Comprei tintas acrílicas com o pouco dinheiro que sobrava do mês. O cheiro das tintas enchia a casa e fazia-me sentir viva.

Mas nem tudo era fácil. O Rui começou a ficar impaciente.
— Estás sempre com essas pinturas! E as crianças? E eu?
— Rui, isto faz-me bem…
— Faz-te bem? E se fosses trabalhar mais umas horas? Isso sim fazia-nos bem!
As discussões tornaram-se frequentes. A minha mãe dizia à vizinha:
— A Maria anda com ideias…
Sentia-me sozinha no meio da minha própria família.

No trabalho também não era melhor. Um dia levei um desenho para mostrar à colega Ana.
— Que giro… mas não tens medo de perder tempo com isso? — perguntou ela, com aquele tom condescendente.
Comecei a duvidar de mim mesma outra vez.

Mas havia algo dentro de mim que não me deixava desistir. Comecei a partilhar os meus quadros nas redes sociais sob um pseudónimo: “Maria das Cores”. Recebia comentários de desconhecidos:
— Que sensibilidade!
— Que talento escondido!
Sentia-me finalmente vista.

Um dia recebi uma mensagem do senhor Joaquim, dono da pastelaria do bairro:
— Maria das Cores? Não quer expor aqui uns quadros?
O coração quase me saltou do peito. Aceitei sem pensar duas vezes.

No dia da exposição, levei os quadros embrulhados em lençóis velhos. O Rui não quis ir comigo.
— Isso é uma vergonha… vais mostrar esses rabiscos?
Fui sozinha. Quando cheguei à pastelaria, vi as paredes cheias das minhas cores. Senti vontade de chorar.

As pessoas começaram a entrar: vizinhos, colegas do trabalho, até a professora de Educação Visual da escola apareceu.
— Maria! Sempre soube que tinhas algo especial — disse ela com um sorriso sincero.
A minha mãe entrou devagarinho e ficou parada à porta. Olhou para mim e depois para os quadros.
— São teus? — perguntou baixinho.
Assenti com medo da resposta dela.
Ela aproximou-se de um quadro onde pintei as mãos dela a fazer pão.
— Isto… isto está bonito — murmurou com lágrimas nos olhos.
Nesse momento percebi: não precisava da aprovação de ninguém para ser feliz, mas tê-la ali foi como um abraço depois de anos ao frio.

A exposição foi um sucesso modesto: vendi dois quadros e recebi encomendas para mais três. O Rui continuou distante durante algum tempo, mas aos poucos foi aceitando o meu novo eu. Um dia chegou a casa com um cavalete improvisado feito por ele na garagem.
— Para pintares à vontade — disse sem olhar nos meus olhos.
Sorri-lhe com gratidão silenciosa.

Hoje continuo a trabalhar no escritório porque as contas não se pagam sozinhas. Mas todas as noites pinto até tarde. A Inês já pinta comigo; o Tiago desenha dragões coloridos ao meu lado.

Às vezes pergunto-me: quantos sonhos morrem todos os dias por falta de coragem ou apoio? Quantas Marias há por aí caladas no fundo das suas rotinas?

E vocês? O que fariam se deixassem o medo para trás?