Sempre achei que tinha uma amiga: até ouvir que eu era apenas uma solução conveniente
— Achas mesmo que somos amigas, Mariana? — A voz da Inês ecoou na minha cabeça como um trovão inesperado. O café estava cheio, mas de repente tudo ficou em silêncio à minha volta. O cheiro do café torrado, o tilintar das chávenas, as conversas paralelas — tudo desapareceu. Só restava aquela pergunta, crua e cortante.
Olhei para ela, sem saber o que responder. O meu coração batia tão forte que temi que todos à volta o ouvissem. Sempre achei que a amizade era um porto seguro, um lugar onde podia ser eu mesma, sem máscaras nem julgamentos. Desde o liceu, eu e a Inês éramos inseparáveis. Ríamos até às lágrimas, partilhávamos segredos, chorávamos juntas nas derrotas e celebrávamos as pequenas vitórias da vida. Era ela quem me segurava a mão quando o meu pai morreu, era eu quem lhe emprestava o ombro quando ela discutia com a mãe.
Mas agora, ali à minha frente, estava uma estranha. Os olhos dela não tinham brilho, só cansaço e uma frieza que nunca lhe conheci.
— Não percebo… — murmurei, tentando não tremer. — Como assim?
Ela suspirou, desviando o olhar para a janela embaciada pela chuva de novembro.
— Mariana, tu és… prática. Sempre foste. Estás sempre disponível, nunca reclamas, ajudas-me quando preciso. Mas… não sinto que sejamos amigas de verdade. És mais como… uma solução conveniente.
As palavras dela caíram sobre mim como pedras. Senti-me ridícula, ingénua. Quantas vezes me anulei para estar ao lado dela? Quantos convites recusei, quantos planos adiei só para estar disponível para a Inês? E agora percebia que, para ela, eu era apenas isso: uma presença útil, um apoio fácil.
Levantei-me abruptamente, deixando cair a colher ao chão. O barulho fez-nos olhar para mim. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas forcei-me a não chorar ali.
— Então é isso? — perguntei, a voz embargada. — Todos estes anos… fui só uma muleta?
Ela não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros e a olhar para o telemóvel.
Saí do café sem olhar para trás. A chuva caía forte, mas nem dei por isso. Caminhei pelas ruas de Lisboa sem rumo, sentindo-me mais sozinha do que nunca.
Quando cheguei a casa, a minha mãe estava na cozinha a preparar o jantar.
— Mariana? Estás bem? — perguntou ela, ao ver-me entrar encharcada.
— Estou — menti, tentando sorrir. Mas ela conhecia-me demasiado bem.
— O que aconteceu?
Sentei-me à mesa e contei-lhe tudo. Ela ouviu em silêncio, mexendo no arroz com a colher de pau.
— Sabes, filha… às vezes damos mais do que recebemos. E há pessoas que só sabem receber — disse ela finalmente.
— Mas porquê eu? Porque é que nunca sou suficiente para ninguém? — desabafei, sentindo as lágrimas finalmente correrem-me pelo rosto.
Ela veio sentar-se ao meu lado e abraçou-me.
— Não é uma questão de seres suficiente ou não. É uma questão de quem escolhemos deixar entrar na nossa vida.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Tentei concentrar-me no trabalho no hospital — sou enfermeira no Santa Maria — mas tudo me parecia vazio. Os turnos eram longos e cansativos; os colegas falavam de jantares e fins de semana em família e eu sentia-me cada vez mais isolada.
Uma noite, depois de um turno de 12 horas nas urgências, sentei-me no balneário e olhei para o telemóvel. Nenhuma mensagem da Inês. Nenhuma chamada perdida. Só notificações do grupo da família e do banco a avisar que o saldo estava baixo.
Pensei em ligar à minha irmã mais nova, a Sofia. Mas lembrei-me da última discussão que tivemos: ela acusou-me de ser demasiado controladora, de querer sempre resolver os problemas dela sem ser chamada. Talvez fosse verdade. Talvez eu só soubesse dar quando ninguém pedia nada em troca.
Na semana seguinte, cruzei-me com a Inês no supermercado do bairro. Ela estava com um grupo de colegas novos do trabalho; riam-se alto e pareciam felizes. Ela olhou para mim por breves segundos e depois desviou o olhar como se eu fosse invisível.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era justo! Eu tinha estado lá em todos os momentos importantes da vida dela: quando o pai dela saiu de casa, quando ela reprovou no exame de condução, quando terminou com o Pedro depois de três anos juntos… E agora era descartada como se nunca tivesse existido.
Nessa noite não consegui dormir. Revivi cada momento da nossa amizade: as tardes no jardim da Estrela a estudar para os exames nacionais; as noites em que dormíamos na casa uma da outra porque tínhamos medo do futuro; as conversas sobre sonhos e medos enquanto víamos as luzes da cidade pela janela do quarto dela.
Lembrei-me também das vezes em que me senti usada: quando ela só me ligava porque precisava de boleia; quando me pedia dinheiro emprestado e esquecia-se de devolver; quando cancelava planos à última hora porque surgia algo melhor.
Porque é que nunca vi os sinais? Porque é que insisti tanto numa amizade unilateral?
No domingo seguinte fui almoçar com os meus pais e a Sofia. O ambiente estava tenso; os meus pais discutiam sobre dinheiro e a Sofia estava colada ao telemóvel.
— Mariana, estás tão calada… — comentou o meu pai.
— Estou cansada — respondi simplesmente.
A Sofia levantou os olhos do telemóvel e fitou-me.
— Ainda estás chateada comigo?
Suspirei.
— Não estou chateada contigo, Sofia… Só estou cansada de ser sempre eu a tentar resolver tudo para toda a gente.
Ela ficou em silêncio por uns segundos e depois disse:
— Se calhar devias pensar mais em ti própria…
As palavras dela ecoaram na minha cabeça durante dias. Talvez estivesse na altura de mudar alguma coisa em mim.
Comecei a recusar pedidos de turnos extra no hospital; comecei a dizer “não” quando não me apetecia sair ou ajudar alguém só porque sim. No início senti-me egoísta — mas aos poucos comecei a sentir uma leveza nova dentro de mim.
Um dia recebi uma mensagem inesperada da Inês:
“Preciso falar contigo.”
O meu coração disparou — parte de mim queria ignorar, outra parte queria ouvir o que ela tinha para dizer.
Encontrámo-nos no mesmo café onde tudo tinha começado a desmoronar-se.
— Mariana… — começou ela, hesitante — Desculpa se fui dura contigo naquele dia. Mas precisava ser honesta… Senti que estava presa numa relação onde só tu davas e eu só recebia. E isso fez-me sentir mal comigo própria também.
Olhei para ela durante longos segundos.
— Sabes o que dói mais? Não foi teres dito aquilo… Foi perceber que nunca te importaste realmente comigo como pessoa. Eu era só um apoio conveniente quando precisavas.
Ela baixou os olhos.
— Talvez tenhas razão… Mas também acho que nunca te permitiste receber nada de mim. Sempre quiseste ser forte, resolver tudo sozinha… Nunca me deixaste ajudar-te verdadeiramente.
Saí daquele encontro com mais perguntas do que respostas. Será que fui mesmo só uma muleta? Ou será que também nunca soube pedir ajuda?
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Ainda sinto falta da Inês às vezes — das conversas longas, das gargalhadas partilhadas — mas aprendi a valorizar quem realmente está presente por inteiro na minha vida: a minha família (com todas as suas imperfeições), os colegas do hospital com quem partilho confidências nos turnos noturnos, até mesmo a Sofia com as suas birras adolescentes.
Pergunto-me muitas vezes: quantas amizades são realmente recíprocas? Quantas vezes nos anulamos só para não ficarmos sozinhos? Será que vale mesmo a pena dar tanto de nós sem receber nada em troca?