Seis Anos de Silêncio: O Peso de Cuidar e Ser Esquecida

— Não podes pedir-me mais nada, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto segurava a chávena de chá já fria nas mãos. O silêncio da cozinha era cortante. A avó Maria dormia no quarto ao lado, respirando com dificuldade, como fazia todas as noites desde que o AVC lhe roubou metade do corpo e quase toda a fala.

A minha sogra, Dona Teresa, olhou-me através do ecrã do telemóvel, lá de França, onde estava há seis anos. — Filha, eu sei que é difícil, mas tu és forte. Eu não posso voltar agora. Preciso deste trabalho para pagar as contas da casa. — A voz dela soava distante, quase automática.

Fechei os olhos. Senti o peso dos anos a cair-me nos ombros. Seis anos. Seis anos a trocar fraldas geriátricas, a dar banho à avó Maria, a preparar sopas sem sal e a ouvir o meu marido, Rui, chegar tarde do trabalho e dizer apenas: — Obrigado, amor. — Como se um obrigado pudesse pagar noites sem dormir e dias sem descanso.

No início, pensei que fazia parte da família. Que cuidar da avó era um gesto de amor e gratidão. Mas com o tempo, percebi que era apenas conveniente para todos. A sogra foi para França porque “não havia outra solução”. O Rui nunca questionou. E eu? Eu fui ficando.

Lembro-me do primeiro inverno sozinha com a avó Maria. O Rui trabalhava em turnos na fábrica e só vinha a casa para comer e dormir. A casa era fria, húmida, e eu passava horas a tentar aquecer a avó com mantas e histórias antigas. Ela sorria pouco, mas quando sorria, sentia-me útil.

Mas a utilidade não é amor. E comecei a perceber isso quando os meus próprios sonhos foram ficando para trás. Queria voltar a estudar enfermagem, mas “agora não dá”. Queria ter filhos, mas “não é altura”. Queria viajar, mas “quem fica com a avó?”.

— Filha, tens de compreender… — insistia Dona Teresa ao telefone. — Eu mando dinheiro todos os meses! —

Dinheiro? O que é o dinheiro quando se perde a juventude? Quando se perde o respeito?

O Rui começou a afastar-se de mim. Primeiro eram só os turnos longos. Depois vieram as discussões baixas no corredor.

— Não percebes que estou cansado? — atirava ele.

— E eu? Achas que não estou? — respondia eu, com lágrimas presas na garganta.

Uma noite, ouvi-o ao telefone na varanda:

— Mãe, a Ana está impossível… Não sei quanto tempo mais isto aguenta assim.

Impossível? Eu? Depois de tudo?

A avó Maria piorou no último ano. Começou a esquecer-se de quem eu era. Chamava-me “menina” ou confundia-me com a própria filha. Às vezes chorava baixinho à noite e eu sentava-me ao lado dela até adormecer.

Os vizinhos começaram a comentar:

— Coitada da Ana… Aquilo não é vida para ninguém.

Mas ninguém ajudava. Ninguém vinha sequer perguntar se eu precisava de alguma coisa.

No Natal passado, Dona Teresa prometeu vir passar uns dias connosco. Comprei bacalhau, preparei rabanadas como ela gostava. No dia 23 ligou:

— Filha, não vou conseguir ir… O patrão não me dá folga.

Senti o chão fugir-me dos pés. Passei o Natal sozinha com a avó Maria e o Rui chegou tarde, já meio embriagado do jantar da empresa.

— Não faças essa cara — disse ele. — A vida é assim mesmo.

Mas não devia ser.

Comecei a sonhar acordada com outra vida. Uma vida em que acordava sem medo do relógio ou do próximo grito da avó Maria durante um pesadelo noturno. Uma vida em que podia sair à rua sem sentir culpa por deixar alguém sozinho.

Um dia, fui à farmácia buscar medicamentos e cruzei-me com a minha antiga colega de escola, a Joana.

— Ana! Estás tão diferente… — disse ela, olhando-me de cima abaixo.

Contei-lhe um pouco da minha rotina e vi nos olhos dela um misto de pena e incredulidade.

— Tens de pensar em ti… — sussurrou ela antes de se despedir.

Pensei muito nessa frase nas semanas seguintes. E comecei a sentir raiva. Raiva da sogra que nunca voltou. Raiva do Rui que nunca me defendeu nem me apoiou verdadeiramente. Raiva de mim própria por ter aceitado tudo isto como se fosse normal.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui sobre as contas da casa e o estado da avó Maria, explodi:

— Chega! Não sou empregada de ninguém! Não sou mártir! Quero viver!

O Rui ficou calado durante uns segundos eternos.

— Então vai-te embora — disse ele finalmente, sem olhar para mim.

Fui para o quarto e chorei até adormecer.

No dia seguinte acordei com uma decisão tomada: ia falar com Dona Teresa e exigir uma solução. Liguei-lhe cedo:

— Preciso que voltes ou arranjes alguém para cuidar da tua mãe. Eu não aguento mais.

Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que tinha desligado.

— Ana… Eu não posso… Mas vou tentar arranjar uma vizinha para ajudar…

Não era suficiente. Nada era suficiente agora.

Comecei a procurar trabalho fora de casa. Arranjei um part-time numa pastelaria do bairro. O Rui não gostou:

— Vais deixar a minha avó sozinha?

— Não é só tua avó! — gritei-lhe na cara pela primeira vez em anos.

Os dias passaram mais depressa depois disso. Senti-me viva pela primeira vez em muito tempo ao servir cafés e ouvir conversas banais dos clientes.

A avó Maria acabou por falecer numa manhã fria de março. Estava sozinha com ela quando aconteceu. Sentei-me ao lado dela durante horas até o Rui chegar do trabalho e encontrar-nos assim: eu de mão dada à avó já sem vida.

O funeral foi pequeno e triste. Dona Teresa veio finalmente de França, chorou muito e agradeceu-me entre soluços:

— Nunca vou esquecer o que fizeste pela minha mãe…

Mas eu sabia que ia esquecer sim. Todos esquecem quem cuida.

Depois do funeral, sentei-me na sala vazia com o Rui.

— E agora? — perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros:

— Agora voltamos à nossa vida…

Mas eu já não sabia qual era essa vida nem se queria continuar nela.

Hoje escrevo estas palavras sentada no banco do jardim onde costumava passear com a avó Maria nos raros dias bons. Olho para trás e vejo uma mulher cansada mas mais forte do que nunca.

Será que valeu a pena sacrificar tanto por uma família que nunca me viu realmente? Será que ainda faz sentido lutar por um casamento onde só existe silêncio? E vocês… até onde iriam por amor ou lealdade?