Segunda Chance: Como Uma Mentira Mudou o Meu Destino
— Não mintas mais, mãe! — gritei, a voz embargada, enquanto o silêncio pesado se abatia sobre a mesa de jantar. O cheiro do bacalhau com natas, que a minha mãe preparava todos os Natais, parecia agora enjoativo. O meu pai olhava para o prato, a mão a tremer ligeiramente. A minha irmã, Inês, mordia o lábio inferior, olhos marejados. E eu, Catarina, sentia o chão fugir-me dos pés.
Tudo começou com uma frase solta da minha tia Rosa: “A verdade acaba sempre por vir ao de cima.” Não percebi logo o que queria dizer, mas o olhar dela para a minha mãe era um aviso. O meu coração acelerou. Desde pequena que sentia que havia algo errado, uma distância entre mim e o meu pai que não sabia explicar. Mas nunca imaginei que aquela noite mudaria tudo.
— Catarina, não é o momento… — sussurrou a minha mãe, tentando manter a compostura.
— Se não for agora, quando? — insisti, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. — Já chega de segredos!
O meu pai levantou-se abruptamente, a cadeira a arrastar-se pelo chão de azulejo frio. — Eu vou sair — murmurou, mas a minha mãe agarrou-lhe o braço.
— Não! Fica. Está na hora de dizermos a verdade.
O silêncio era ensurdecedor. O relógio da parede marcava 21h17. Lembro-me porque olhei para ele, como se o tempo pudesse parar e impedir o que estava prestes a acontecer.
— Catarina… — começou a minha mãe, a voz trémula — tu não és filha do teu pai.
O mundo parou. Senti um zumbido nos ouvidos e uma raiva surda a crescer dentro de mim. Olhei para o homem que sempre chamei de pai e vi-lhe as lágrimas nos olhos.
— Porquê? — perguntei, quase sem voz. — Porquê mentiram-me toda a vida?
A minha mãe chorava agora abertamente. — Eu era jovem… estava sozinha… conheci o teu pai biológico numa festa em Coimbra. Foi uma noite só. Quando descobri que estava grávida, já estava com o António… Ele aceitou-te como filha dele desde o início.
Olhei para o meu pai — António — e vi-lhe a dor estampada no rosto.
— Sempre te amei como minha filha — disse ele, com dificuldade. — Mas foi difícil… saber que nunca seria suficiente.
A minha irmã Inês chorava em silêncio. Apercebi-me de que ela sabia. Senti-me traída por todos.
Levantei-me da mesa e saí porta fora, ignorando os apelos da minha mãe. A noite estava fria e húmida. Caminhei sem rumo pelas ruas estreitas de Aveiro, as luzes amarelas refletidas nos canais. O vento cortava-me a cara, mas não me importava. Só queria fugir daquela dor.
Durante dias não atendi telefonemas nem respondi a mensagens. Fiquei em casa da minha amiga Filipa, que me acolheu sem perguntas. Chorava todas as noites, sentindo-me perdida e sozinha. Como podia confiar em alguém depois disto?
A Filipa tentava animar-me. — Catarina, eles fizeram o melhor que sabiam…
— Não quero desculpas! — respondia-lhe, zangada com tudo e todos.
No trabalho, era um fantasma. Os colegas notavam que algo se passava, mas ninguém tinha coragem de perguntar. O meu chefe, Sr. Manuel, chamou-me ao gabinete.
— Catarina, se precisares de uns dias…
— Estou bem — menti.
Mas não estava. Sentia-me vazia. Comecei a questionar tudo: quem era eu? O que mais me tinham escondido? Passei noites a vasculhar álbuns de fotografias antigas à procura de pistas, de sinais que me tivessem escapado.
Uma tarde, recebi uma carta da minha mãe. Não consegui abri-la logo. Ficou dias na mesa de cabeceira até ganhar coragem.
“Minha filha,
Sei que te magoei e não sei se algum dia me vais perdoar. Só queria proteger-te. O António ama-te como se fosses dele e eu também. Nunca quisemos que te sentisses diferente ou menos amada.”
As palavras dela fizeram-me chorar novamente. Mas também senti raiva: proteger-me? Ou protegerem-se a eles próprios?
Decidi procurar respostas sobre o meu pai biológico. Não sabia por onde começar. Falei com a tia Rosa, que sempre foi mais direta.
— Ele chama-se Jorge Silva. Vive em Lisboa agora… Nunca soube de ti.
Fiquei atordoada. O homem que me deu vida nem sabia que eu existia? Senti uma mistura de curiosidade e medo.
Durante semanas debati-me com a decisão: devia procurá-lo? E se ele não quisesse saber de mim? E se tivesse outra família?
Acabei por escrever-lhe uma carta simples:
“Sou Catarina… talvez não saibas quem sou, mas acho que és meu pai biológico.”
Esperei semanas por resposta. Cada vez que o carteiro passava, o coração saltava-me do peito. Finalmente chegou uma resposta manuscrita:
“Catarina,
Recebi a tua carta com surpresa e emoção. Quero conhecer-te se assim desejares.”
O encontro foi marcado para um sábado à tarde num café em Lisboa. Cheguei cedo demais e pedi um galão só para ter algo nas mãos. Quando Jorge entrou, reconheci-lhe os olhos castanhos iguais aos meus.
Falámos durante horas. Ele contou-me da sua vida: era professor universitário, tinha dois filhos adolescentes e uma mulher chamada Teresa que sabia da minha existência desde que recebeu a carta.
— Sinto muito por não ter estado presente — disse ele, emocionado.
— Não tinhas como saber — respondi, ainda sem saber como me sentir.
Voltámos a encontrar-nos algumas vezes depois disso. Aos poucos fui conhecendo os meus meios-irmãos e Teresa recebeu-me com carinho surpreendente.
Mas nada disto apagava a dor do passado nem resolvia os conflitos com a minha família de sempre. A minha mãe ligava todos os dias; o meu pai António enviava mensagens curtas: “Tenho saudades tuas.”
Demorei meses até conseguir voltar à casa dos meus pais em Aveiro. Quando entrei na sala, senti o cheiro familiar do café acabado de fazer e das bolachas Maria na lata azul.
A minha mãe abraçou-me com força.
— Desculpa…
O meu pai olhou-me nos olhos:
— Continuo aqui para ti, Catarina.
Chorei nos braços deles como quando era criança. Percebi então que família é mais do que sangue; é quem fica quando tudo desaba.
Hoje ainda luto para perdoar totalmente. A relação com Jorge é cordial mas distante; com António e a minha mãe é feita de altos e baixos, mas há amor verdadeiro ali.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas em segredos por medo da verdade? E será possível reconstruir laços depois de uma traição tão profunda?
E vocês? Já sentiram que toda a vossa vida podia mudar com uma só revelação?