“Se Me Amas, Larga o Trabalho”: O Dia em Que o Meu Mundo Ruiu
“Ana, ou largas o teu trabalho, ou não sei se consigo continuar contigo.”
As palavras do Rui ecoaram na minha cabeça como um trovão. Estávamos sentados à mesa da cozinha, a loiça do jantar ainda por arrumar, e eu sentia o chão fugir-me dos pés. Olhei para ele, à espera de um sorriso nervoso, de um pedido de desculpa, mas só encontrei o olhar duro de quem já tomou uma decisão.
“Desculpa? Rui, estás a falar a sério?”
Ele desviou o olhar, mexendo no guardanapo entre os dedos. “Estou. Não me sinto homem ao teu lado. Tu ganhas mais do que eu, tens sempre reuniões, viagens… Sinto-me inútil. Não é isto que quero para mim. Para nós.”
Senti um nó na garganta. O meu trabalho como diretora de marketing numa empresa de tecnologia era fruto de anos de esforço. Tantas noites em claro, tantas vezes a sacrificar fins de semana para chegar onde cheguei. E agora, o homem que sempre disse ter orgulho em mim pedia-me para abdicar de tudo.
“Rui, eu amo-te. Amo a nossa família. Mas não posso simplesmente largar tudo aquilo por que lutei. Não é justo.”
Ele levantou-se abruptamente, a cadeira arrastando-se no chão com um estrondo. “Pois, para ti nunca é justo! Para mim é que nunca pensas! Achas que não vejo como olhas para mim? Como se eu fosse menos?”
Fiquei ali sentada, imóvel, enquanto ele saía da cozinha e subia as escadas. Ouvi a porta do quarto bater com força. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tínhamos construído juntos. Lembrei-me do Rui do liceu, sempre divertido, sempre confiante. O rapaz que me fazia rir nos intervalos e me escrevia bilhetes com poemas toscos. Quando nos casámos, prometemos apoiar-nos mutuamente, mas nunca pensei que o sucesso pudesse ser uma ameaça.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para nós e para a nossa filha, a Matilde, de oito anos. Ela entrou na cozinha com o cabelo despenteado e abraçou-me pelas costas.
“Mamã, hoje vais buscar-me à escola?”
Sorri-lhe, tentando esconder a tristeza. “Vou tentar, querida.”
O Rui apareceu pouco depois, calado e distante. Nem sequer me olhou nos olhos quando saiu para o trabalho.
As semanas seguintes foram um inferno silencioso. Rui evitava-me, passava horas no computador ou saía com amigos. Eu sentia-me cada vez mais sozinha dentro da nossa própria casa. Comecei a questionar-me: estaria mesmo a ser egoísta? Estaria a sacrificar o nosso casamento pelo meu trabalho?
Uma noite, depois de deitar a Matilde, sentei-me ao lado do Rui no sofá.
“Rui, precisamos de falar.”
Ele suspirou, sem tirar os olhos da televisão.
“Eu amo-te”, comecei. “Mas não posso abdicar de quem sou só para te agradar. O meu trabalho faz parte de mim.”
Ele desligou a televisão e olhou finalmente para mim.
“E eu? Eu faço parte de ti?”
Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
“Claro que sim! Mas não posso ser só tua mulher. Preciso de ser eu própria também.”
Ele abanou a cabeça.
“Sabes o que é ouvir os meus amigos gozarem comigo? Dizem que sou um encostado porque tu é que sustentas a casa! O meu pai diz que perdi a dignidade!”
A raiva subiu-me à garganta.
“E tu? O que é que tu achas? Vais deixar que os outros decidam quem tu és?”
Ele ficou em silêncio. Pela primeira vez vi medo nos seus olhos.
Os dias passaram e nada mudou. As discussões tornaram-se rotina. A Matilde começou a perguntar porque é que estávamos sempre tristes. Um dia, ao ir buscá-la à escola, encontrei a professora Joana à porta.
“Ana, posso falar consigo um minuto?”
Assenti, preocupada.
“A Matilde tem estado mais calada… desenha sempre uma casa partida ao meio. Está tudo bem em casa?”
Senti uma pontada no peito. Estávamos a magoar a nossa filha sem querer.
Nessa noite esperei pelo Rui até tarde. Quando chegou, sentei-o à mesa da cozinha.
“Rui, isto não pode continuar assim. Estamos a destruir-nos… e à Matilde também.”
Ele passou as mãos pelo rosto.
“Não sei o que fazer… Sinto-me perdido.”
Ficámos ali sentados em silêncio durante minutos intermináveis.
No fim-de-semana seguinte fomos visitar os meus pais em Sintra. A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem.
“Filha, queres conversar?”
Desatei a chorar no colo dela.
“Ele quer que eu largue tudo… Diz que não se sente homem ao meu lado.”
Ela acariciou-me o cabelo.
“Sabes, quando casei com o teu pai também houve alturas difíceis. Mas nunca deixei de ser eu própria por causa dele… Nem ele por minha causa.”
O meu pai entrou na sala nesse momento e ouviu parte da conversa.
“Rui tem de perceber que ser homem não é ganhar mais dinheiro ou mandar em casa. É saber amar e respeitar.”
Voltei para casa com as palavras dos meus pais na cabeça. Tentei falar com o Rui mais uma vez.
“Queres ir à terapia comigo? Precisamos de ajuda.”
Ele hesitou mas acabou por aceitar.
As primeiras sessões foram dolorosas. O Rui chorou pela primeira vez à minha frente desde que nos conhecemos.
“Sinto-me pequeno… Como se nunca fosse suficiente para ti.”
A terapeuta ajudou-nos a perceber que ambos tínhamos feridas antigas: ele cresceu num ambiente onde o pai era autoritário e machista; eu aprendi desde cedo a lutar pelo meu espaço num mundo de homens.
Começámos devagarinho a reconstruir-nos. O Rui procurou formação noutra área e conseguiu um novo emprego onde se sentia valorizado. Eu aprendi a desligar do trabalho quando estava em casa e a dar mais atenção à família.
Não foi fácil nem rápido. Houve dias em que pensei desistir de tudo. Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio — não perfeito, mas nosso.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres já ouviram estas palavras? Quantos homens ainda vivem presos ao medo de não serem suficientes? Será possível amar alguém sem nos perdermos pelo caminho?