Rosas no meu vestido, lágrimas no rosto: A minha noite de vergonha e coragem – história de Mariana do liceu de Lisboa
— Mariana, não podes entrar assim vestida! — A voz da professora Helena ecoou pelo átrio do liceu, cortando o burburinho animado do baile de finalistas. Senti o olhar de todos pousar em mim, como se as flores bordadas no meu vestido fossem manchas de tinta num quadro branco. — O regulamento é claro: vestidos discretos, sem padrões exuberantes. Vai para casa mudar ou não entras.
Fiquei ali, imóvel, com as mãos a tremer. O vestido era da minha mãe, dos anos 80, cheio de rosas vermelhas e folhas verdes. Tinha passado a tarde a ouvir a minha avó contar histórias de bailes antigos enquanto me ajudava a pentear o cabelo. E agora, tudo parecia ridículo. Senti o calor subir-me ao rosto, as lágrimas a ameaçarem cair.
— Professora, por favor… — tentei argumentar, mas ela já se virava para outra aluna. — Mariana, não insistas. Não quero problemas hoje.
Os meus colegas olhavam-me de lado. Alguns riam-se baixinho. A Inês, que eu pensava ser minha amiga, murmurou para a Beatriz: — Já viste o que ela trouxe vestido? Parece saída de uma novela dos anos 90.
Saí dali a correr, tropeçando nos saltos altos que nunca soube usar. O ar frio da noite bateu-me na cara quando cheguei ao parque de estacionamento vazio. Encostei-me ao carro do meu pai e deixei as lágrimas correrem. Senti-me pequena, ridícula, deslocada.
Peguei no telemóvel e liguei à Sofia. A voz dela atendeu ao terceiro toque:
— Mariana? Então? Já estás no baile?
— Fui expulsa — solucei. — Por causa do vestido… disseram que era demasiado chamativo.
Houve um silêncio do outro lado. Depois ouvi a respiração dela, calma:
— Onde estás?
— No parque de estacionamento… Não quero ir para casa já. O meu pai vai gozar comigo, a minha mãe vai chorar…
— Espera aí. Eu já vou ter contigo.
Desliguei e sentei-me no passeio, abraçando os joelhos. O cheiro a gasolina misturava-se com o perfume barato das flores do vestido. Lembrei-me da minha mãe a sorrir quando me viu pronta: “Estás linda, filha. Vais arrasar.” Agora só queria desaparecer.
Passaram-se dez minutos até ver a figura da Sofia a correr na minha direção, com o cabelo apanhado à pressa e um casaco por cima do pijama.
— Mariana! — Ela ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me forte. — Que estupidez… Como é que ainda fazem estas coisas?
— Toda a gente olhou para mim como se fosse um bicho raro… — murmurei.
— Porque são todos iguais e têm medo de quem é diferente — disse ela, limpando-me as lágrimas com as mangas do casaco. — Mas eu sempre gostei das tuas diferenças.
Ficámos ali sentadas em silêncio durante uns minutos. Depois a Sofia levantou-se e puxou-me pela mão:
— Anda daí. Vamos dar uma volta até ao miradouro.
Entrámos no carro dela e subimos até ao Miradouro da Senhora do Monte. Lisboa brilhava lá em baixo, indiferente à minha vergonha. Sofia abriu uma garrafa de sumo e brindámos:
— Às miúdas que não têm medo de usar vestidos floridos!
Rimo-nos pela primeira vez naquela noite. Aos poucos fui-me acalmando, ouvindo a Sofia contar histórias disparatadas sobre os professores e os colegas. Senti o peso no peito aliviar-se.
— Achas que devia ter ficado calada? Que devia ter levado um vestido preto como toda a gente? — perguntei.
Sofia olhou para mim com aquele ar sério dela:
— Achas mesmo que eras tu se fizesses isso? Mariana, tu sempre foste diferente. Sempre tiveste coragem de ser quem és. Não deixes que te façam sentir vergonha disso.
O telemóvel vibrou: era uma mensagem da minha mãe.
“Filha, onde estás? Estou preocupada. Liga-me quando puderes.”
Senti um aperto no coração. Não queria voltar para casa e enfrentar o olhar triste dela, nem os comentários sarcásticos do meu pai: “Já sabia que ias arranjar confusão com essas tuas ideias esquisitas”.
Sofia percebeu o meu silêncio:
— Queres dormir em minha casa hoje?
Assenti com a cabeça. Mandámos mensagem à minha mãe e seguimos para casa da Sofia. A mãe dela recebeu-me com um abraço apertado e um prato de sopa quente.
— Não ligues ao que dizem na escola — disse ela enquanto me servia sopa. — Quando eu era nova também fui expulsa de um baile por usar calças em vez de saia. O mundo muda devagarinho… mas muda.
Naquela noite adormeci na cama da Sofia, rodeada de posters dos Arctic Monkeys e livros espalhados pelo chão. Sonhei com um baile onde todas as raparigas usavam vestidos diferentes e dançavam juntas sem medo.
No dia seguinte acordei com uma sensação estranha: uma mistura de vergonha e orgulho. A Sofia já estava acordada, sentada à janela a ver o nascer do sol sobre Lisboa.
— Sabes o que devíamos fazer? — disse ela, com um sorriso maroto. — Devíamos escrever uma carta à direção da escola. Contar o que aconteceu ontem.
— Achas que vale a pena?
— Se não formos nós a dizer alguma coisa, ninguém vai mudar nada.
Passámos a manhã a escrever juntas. Contámos tudo: como me senti humilhada, como as regras antiquadas excluíam quem era diferente, como era importante aceitar todas as formas de expressão.
Assinámos as duas e enviámos por email à direção do liceu.
Durante dias não recebemos resposta. Os colegas cochichavam nos corredores; alguns apoiavam-me em segredo, outros diziam que eu só queria chamar a atenção.
Em casa, o ambiente estava tenso. O meu pai recusava-se a falar comigo; a minha mãe tentava consolar-me mas também tinha medo das críticas das vizinhas.
Uma semana depois fui chamada ao gabinete da diretora. Entrei com as mãos suadas e o coração aos pulos. A diretora olhou para mim por cima dos óculos:
— Mariana, li a tua carta com atenção. Compreendo que te tenhas sentido magoada… Mas também temos regras para cumprir.
Respirei fundo:
— As regras podem mudar se forem injustas.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos intermináveis.
— Vamos discutir isso na próxima reunião pedagógica — disse finalmente. — Entretanto, quero pedir-te desculpa pela forma como foste tratada naquela noite.
Saí dali sem saber se tinha ganho ou perdido alguma coisa. Mas pela primeira vez senti que tinha feito ouvir a minha voz.
No final do ano letivo anunciaram mudanças no regulamento dos bailes: agora cada aluno podia escolher livremente o seu traje desde que fosse respeitador.
No último dia de aulas levei o mesmo vestido florido e tirei uma fotografia com a Sofia no pátio da escola. Sorrimos as duas para a câmara, orgulhosas.
Hoje olho para trás e penso: quantas vezes deixamos que nos calem por medo do ridículo? Quantas vezes escondemos quem somos só para agradar aos outros? Será que vale mesmo a pena sacrificar a nossa essência para caber num molde apertado?