Regresso Inesperado: O Lar Que Já Não Era Meu

— Vais mesmo deixar-me aqui sozinho? — perguntei em voz baixa, quase sem acreditar no que ouvia ao telefone. O capitão Silva suspirou do outro lado da linha, a voz cansada mas firme:

— Não é uma escolha, Duarte. A missão acabou mais cedo. Amanhã estás em Lisboa. Aproveita o tempo com quem amas.

Desliguei, o coração a bater descompassado. Sete dias antes do previsto. Sete dias para matar saudades da Inês, para sentir o cheiro do seu cabelo, para lhe contar tudo o que vivi nos últimos meses em missão. Passei a noite em claro, a imaginar o sorriso dela quando me visse à porta, flores na mão, farda ainda por trocar.

O voo foi longo, mas nem dei pelo tempo passar. O aeroporto de Lisboa parecia mais brilhante do que nunca. O taxista, um senhor chamado Joaquim, olhou-me pelo retrovisor e sorriu:

— Vai ver a namorada, não é? Nota-se logo na cara dos apaixonados.

Sorri de volta, sem conseguir esconder o nervosismo. — Vou surpreendê-la. Ela não faz ideia que chego hoje.

O prédio onde vivíamos ficava em Campo de Ourique, uma zona cheia de vida e memórias. Subi as escadas devagar, tentando acalmar o coração. O ramo de flores tremia nas minhas mãos suadas. Ouvi risos abafados vindos do nosso apartamento. O meu nome ecoou na cabeça: Duarte, Duarte, Duarte…

Abri a porta devagarinho, esperando ver Inês sozinha, talvez a ver televisão ou a ler um dos seus romances policiais. Mas o que vi foi outra coisa.

Ela estava no sofá, deitada nos braços do Miguel — o meu melhor amigo desde a infância. O riso deles morreu assim que me viram. As flores caíram-me das mãos, espalhando-se pelo chão como um tapete de desilusão.

— Duarte… — murmurou Inês, levantando-se num salto, os olhos cheios de lágrimas.

Miguel ficou parado, pálido como um fantasma. — Eu… não era suposto…

— Não era suposto eu voltar tão cedo? — interrompi-o, a voz embargada pela raiva e pela dor.

O silêncio era pesado. Senti-me um estranho na minha própria casa. Olhei à volta: as fotografias nossas ainda estavam nas prateleiras, mas agora pareciam pertencer a outra vida.

— Duarte, desculpa… — Inês aproximou-se, mas recuei instintivamente.

— Há quanto tempo? — perguntei, tentando manter a dignidade que me restava.

Ela hesitou. — Dois meses.

Dois meses. Ou seja, desde que parti para a missão. Senti o chão fugir-me dos pés.

Miguel tentou falar: — Eu nunca quis magoar-te…

— Mas magoaram — respondi, olhando-o nos olhos pela primeira vez. — Os dois.

Saí dali sem olhar para trás. As escadas pareciam intermináveis. Lá fora, o ar da noite era frio e cortante. Sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio e chorei como há muito não chorava.

Liguei à minha mãe. Ela atendeu ao segundo toque:

— Duarte? Já chegaste? Está tudo bem?

A voz dela era um bálsamo. Contei-lhe tudo entre soluços. Ela só disse:

— Vem para casa, filho. Aqui tens sempre um lugar.

Na casa dos meus pais em Almada, fui recebido com abraços apertados e silêncio respeitoso. O meu pai olhou-me nos olhos e disse:

— Às vezes é preciso perder para perceber quem realmente somos.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de emoções: raiva, tristeza, vergonha. Os amigos ligavam-me, mas eu não atendia. Só queria desaparecer.

Uma tarde, a minha irmã Mariana entrou no meu quarto sem bater:

— Vais ficar aí fechado até quando? A vida não parou porque alguém te desiludiu.

— Não percebes… — murmurei.

— Percebo mais do que pensas — respondeu ela, sentando-se ao meu lado. — Também já me traíram. Mas tu és mais forte do que isto.

As palavras dela ficaram comigo. Comecei a sair de casa aos poucos: caminhadas à beira Tejo, cafés solitários em Cacilhas, tardes a ver o pôr-do-sol na Costa da Caparica.

Um dia cruzei-me com Miguel na rua. Ele tentou falar comigo:

— Duarte…

Afastei-me sem dizer uma palavra. Não estava pronto para perdoar.

Inês mandou-me mensagens durante semanas: desculpas, explicações, promessas de amor eterno. Apaguei-as todas sem ler até ao fim.

O tempo passou devagarinho. Voltei ao quartel para tratar da papelada da missão e encontrei o sargento Fonseca:

— Ouvi dizer que passaste por um mau bocado…

Assenti em silêncio.

— Sabes, Duarte… A vida é feita de batalhas dentro e fora do campo de guerra. Mas há sempre uma próxima missão à tua espera.

Essas palavras fizeram-me pensar: será que estava a deixar que uma traição definisse quem eu era?

Comecei a reconstruir-me aos poucos: inscrevi-me num curso de fotografia, algo que sempre quis experimentar; voltei a sair com amigos antigos; reatei laços com familiares afastados pelo tempo e pela distância.

Um dia recebi uma carta da Inês. Não era uma mensagem digital — era uma carta escrita à mão:

“Duarte,
Sei que te magoei mais do que alguma vez poderei reparar. Não espero perdão nem compreensão imediata. Só quero que saibas que foste — e serás sempre — alguém especial para mim. Espero que encontres paz e felicidade onde eu falhei.”

Li aquelas palavras vezes sem conta. Senti raiva, tristeza e uma estranha gratidão por finalmente poder fechar aquele capítulo.

Hoje olho para trás e percebo: aquele regresso inesperado mostrou-me quem realmente sou quando tudo desaba à minha volta. Mostrou-me também quem está verdadeiramente ao meu lado quando mais preciso.

Às vezes pergunto-me: quantas vezes é preciso perder tudo para finalmente nos encontrarmos? E vocês? Já sentiram o chão fugir-vos dos pés assim? Como se volta a confiar depois de uma traição destas?