Regresso Amargo: Quando a Casa se Torna Estranha
— O que é que se passa aqui? — perguntei, com a voz a tremer, mal abri a porta da sala. O relógio marcava 18h12, e eu nunca chegava tão cedo. Mas nesse dia, o cansaço do hospital foi mais forte do que o sentido de dever. Só queria um banho quente e silêncio. Em vez disso, encontrei o Rui e a Ana sentados juntos no sofá, demasiado próximos, as mãos entrelaçadas como se fossem adolescentes apanhados em flagrante.
O Rui levantou-se de um salto, pálido como cal. A Ana ficou sentada, os olhos fixos no chão. O silêncio era tão pesado que quase me sufocava.
— Marta, não é o que parece… — começou ele, mas a voz falhou-lhe.
Ri-me, um riso seco e amargo. — Não é o que parece? Então explica-me, Rui. Explica-me porque é que a minha melhor amiga está na minha casa, de mãos dadas contigo, quando eu devia confiar nos dois mais do que em qualquer pessoa neste mundo.
A Ana chorava baixinho. O Rui tentava balbuciar desculpas. Eu só queria desaparecer. Senti-me ridícula, traída, como se todos os anos de casamento e amizade fossem uma mentira bem ensaiada.
Lembro-me de ter largado a mala no chão e de ter fugido para o quarto. Tranquei-me lá dentro, encostei as costas à porta e deslizei até ao chão. Oiço ainda hoje os sussurros deles do outro lado da porta. Não tive coragem de sair até ouvir a porta da rua bater.
Naquela noite não dormi. Passei horas a olhar para o teto, a tentar perceber onde tinha falhado. Será que fui demasiado ausente? Será que o Rui se sentia sozinho? E a Ana? Como é que ela foi capaz?
No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. No hospital, ninguém percebeu nada — ou pelo menos fingiram não perceber. A minha colega Teresa perguntou-me se estava tudo bem. Sorri e disse que sim. Mas por dentro sentia-me vazia.
Quando voltei a casa, o Rui estava à minha espera na cozinha. Tinha os olhos vermelhos e uma carta na mão.
— Marta, precisamos de falar.
Sentei-me à mesa, sem dizer nada.
— Eu… não sei como isto aconteceu. Juro-te que nunca foi planeado. A Ana… ela estava sempre cá quando tu não podias estar. Começámos a falar, a desabafar… E de repente…
Levantei a mão para o calar.
— Não quero ouvir desculpas. Quero saber há quanto tempo isto dura.
Ele baixou os olhos.
— Uns meses.
Senti uma náusea subir-me à garganta. Meses. Quantas vezes tinham estado juntos debaixo do meu nariz? Quantas vezes me tinham mentido?
— Quero que saias — disse-lhe, com uma calma que nem eu sabia ter.
Ele tentou argumentar, mas fui firme. Arrumou algumas coisas e saiu naquela noite. Fiquei sozinha na casa onde tudo me lembrava deles: as fotografias nas paredes, os livros partilhados, até o cheiro dos lençóis.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. A Ana tentou ligar-me dezenas de vezes. Enviei-lhe uma mensagem curta: “Não quero falar contigo.” Ela respondeu com um texto enorme, cheio de arrependimento e justificações. Apaguei sem ler.
A minha mãe apareceu em minha casa sem avisar. Trazia sopa e um olhar preocupado.
— Filha, tens de comer alguma coisa.
— Não tenho fome.
Ela sentou-se ao meu lado no sofá e pegou-me na mão.
— O Rui ligou-me. Disse-me o que aconteceu… — hesitou — Queres falar?
Abanei a cabeça e chorei no ombro dela como uma criança perdida.
Os meses passaram devagar. No hospital, atirava-me ao trabalho para não pensar. Em casa, evitava tudo o que me lembrasse o Rui ou a Ana. As amigas comuns afastaram-se — algumas por lealdade à Ana, outras porque não sabiam de que lado deviam ficar.
Uma noite, a Teresa convidou-me para jantar em sua casa.
— Marta, tens de sair desse buraco — disse ela, servindo-me um copo de vinho tinto.
— Não sei como recomeçar — confessei-lhe.
Ela sorriu com ternura.
— Um passo de cada vez. Primeiro perdoa-te por confiares nas pessoas erradas. Depois aprende a confiar em ti outra vez.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a correr ao fim da tarde para libertar a raiva e a tristeza. Inscrevi-me num curso de cerâmica ao sábado de manhã — sempre gostei de criar coisas com as mãos, mas nunca tinha tido tempo.
Pouco a pouco, fui recuperando pedaços de mim que julgava perdidos. Redescobri o prazer do silêncio em casa, da música alta enquanto cozinhava só para mim, dos livros lidos até tarde sem ninguém a reclamar da luz acesa.
O Rui tentou voltar algumas vezes. Mandava mensagens longas, pedia desculpa, dizia que me amava e que tinha sido um erro terrível. Eu lia tudo com um nó no estômago mas nunca respondi.
A Ana desapareceu da minha vida como se nunca tivesse existido. Soube por amigas comuns que ela também estava sozinha — o Rui não ficou com ela. Mas isso já não me importava.
Um dia encontrei o meu pai num café do bairro. Ele olhou para mim com aquele ar sério de sempre.
— Sabes, Marta… A vida às vezes obriga-nos a começar do zero quando menos esperamos. Mas tu és forte como a tua mãe. Vais dar a volta por cima.
Sorri-lhe com gratidão e percebi que ele tinha razão.
Hoje olho para trás e vejo aquela noite como um ponto de viragem brutal mas necessário. Perdi pessoas importantes mas ganhei algo maior: respeito por mim própria e coragem para recomeçar sozinha.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes confiamos cegamente nas pessoas à nossa volta sem percebermos quem realmente são? E será possível perdoar quem nos traiu tão profundamente? Gostava de saber o que fariam vocês no meu lugar.