Regresso a Vila Nova: O Reencontro Que Mudou Tudo

— Não devias ter voltado, Sofia. — A voz da minha mãe ecoou fria assim que atravessei a soleira da casa onde cresci. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o aroma da terra molhada, mas nada conseguia suavizar o peso das palavras dela. Olhei-a nos olhos, tentando decifrar se era medo ou raiva que lhe endurecia o rosto.

— Preciso de respostas, mãe. Não posso continuar a fugir do que deixei aqui. — A minha voz saiu trémula, mas determinada.

Catorze anos. Catorze anos desde que fugi de Vila Nova, deixando para trás tudo o que conhecia: os meus pais, os meus amigos, e sobretudo o Miguel. Lembro-me do último verão antes de partir — as tardes passadas junto ao rio, as promessas sussurradas ao luar, e o sabor do primeiro beijo roubado entre as laranjeiras do quintal do senhor António. Mas também me lembro da noite em que tudo mudou.

A discussão entre os meus pais foi tão violenta que pensei que as paredes da casa iam ruir. O meu pai, sempre tão calmo, gritava como nunca o tinha ouvido antes. A minha mãe chorava, agarrada a uma carta que nunca cheguei a ler. No dia seguinte, fiz as malas e parti para Lisboa, jurando nunca mais voltar.

Agora, de regresso, tudo me parecia mais pequeno: as ruas estreitas, a praça onde jogava à macaca com a Mariana e o Tiago, até a escola primária onde aprendi a ler. Mas o peso das memórias era maior do que qualquer edifício.

— O teu pai não quer ver-te — disse a minha mãe, baixando os olhos para o chão de tijoleira.

— E tu? — perguntei, sentindo uma lágrima ameaçar cair.

Ela não respondeu. Apenas se virou e desapareceu pela cozinha. Fiquei ali, sozinha na entrada, sentindo-me uma estranha na minha própria casa.

No dia seguinte, decidi ir até ao café do senhor Manuel. Era ali que toda a vila se reunia para comentar as novidades e partilhar boatos. Assim que entrei, senti todos os olhares pousarem em mim. Sussurros abafados percorreram a sala.

— Olha quem voltou… — murmurou alguém.

Sentei-me ao balcão e pedi um galão. O senhor Manuel olhou-me com uma mistura de surpresa e compaixão.

— Não esperava ver-te por aqui outra vez, Sofia. — A sua voz era gentil, mas carregada de significado.

— Nem eu… — respondi, tentando sorrir.

Foi então que o vi. Miguel entrou no café com a mesma postura descontraída de sempre, mas agora havia rugas nos cantos dos olhos e um cansaço novo no seu andar. O nosso olhar cruzou-se e senti o coração disparar como se tivesse voltado a ser adolescente.

Ele hesitou por um segundo antes de se aproximar.

— Olá, Sofia. — A sua voz era baixa, quase um sussurro.

— Olá, Miguel… — Não sabia o que dizer. Tantas palavras presas na garganta durante tantos anos.

Sentou-se ao meu lado sem pedir licença. O silêncio entre nós era pesado, carregado de tudo o que ficou por dizer.

— Porque voltaste? — perguntou finalmente.

— Preciso de saber a verdade sobre aquela noite… sobre porque é que tudo desabou tão depressa.

Ele olhou para as mãos, evitando o meu olhar.

— Há coisas que é melhor não remexer…

— Não posso continuar a viver sem saber! — exclamei, sentindo a raiva crescer dentro de mim.

Miguel suspirou e passou a mão pelo cabelo.

— O teu pai… ele fez coisas das quais não te orgulharias. E eu… eu tentei proteger-te.

Fiquei em silêncio. Sempre suspeitei que havia mais naquela noite do que me tinham contado.

Ao sair do café, fui até ao rio onde costumávamos pescar. Sentei-me na margem e deixei as lágrimas caírem livremente. O som da água correndo era igual ao de antes, mas eu já não era a mesma miúda ingénua.

Naquela noite, depois do jantar silencioso com a minha mãe, ouvi vozes vindas do quintal. Espreitei pela janela e vi o meu pai a discutir com alguém — era o senhor António. As palavras eram abafadas pelo vento, mas percebi fragmentos: “Ela não pode saber”, “Já chega de mentiras”, “A Sofia merece saber a verdade”.

O coração batia-me descompassado quando decidi sair e enfrentar os dois.

— Chega! Quero saber tudo! — gritei, surpreendendo-os.

O meu pai ficou pálido como cal. O senhor António olhou-me com tristeza.

— Sofia… não é fácil explicar…

— Tentem! — insisti.

Foi então que tudo veio à tona: o meu pai tinha-se envolvido em negócios ilícitos para tentar salvar a nossa casa da falência. O senhor António descobriu e ameaçou contar à polícia se ele não parasse. Naquela noite fatídica, a discussão saiu do controlo e eu fui usada como moeda de troca para garantir o silêncio de todos: afastaram-me de Vila Nova para me protegerem das consequências dos atos do meu pai.

Senti-me traída por todos: pelo meu pai, pela minha mãe que sempre soube e nunca me contou nada, pelo senhor António que assistiu calado à minha partida forçada… até pelo Miguel, que sabia mais do que dizia.

No dia seguinte procurei Miguel novamente. Encontrámo-nos junto à velha ponte de madeira.

— Porque não me disseste nada? — perguntei-lhe com lágrimas nos olhos.

Ele baixou a cabeça.

— Prometi ao teu pai que te protegeria… mesmo que isso significasse afastar-te de mim.

O silêncio entre nós era ensurdecedor. Quis gritar-lhe todas as mágoas guardadas durante anos, mas só consegui chorar.

— Eu amava-te… — sussurrei finalmente.

Miguel aproximou-se e segurou-me as mãos com delicadeza.

— E eu ainda te amo, Sofia. Mas há feridas que talvez nunca cicatrizem…

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções: confrontos com os meus pais, conversas dolorosas com antigos amigos, olhares desconfiados dos vizinhos. Senti-me dividida entre o desejo de recomeçar ali e a necessidade de fugir novamente.

Na última noite antes de regressar a Lisboa, sentei-me no banco da praça central e olhei para as estrelas como fazia em criança. Miguel sentou-se ao meu lado em silêncio. Ficámos assim durante minutos intermináveis até ele falar:

— Vais voltar?

Olhei-o nos olhos e vi neles tudo o que deixei para trás: amor, dor, esperança e resignação.

— Não sei… Talvez seja preciso perder tudo para perceber o que realmente importa…

Agora escrevo estas palavras já em Lisboa, mas sinto Vila Nova dentro de mim como uma ferida aberta e uma promessa por cumprir. Será possível perdoar quem mais nos magoou? E será possível recomeçar onde tudo terminou?