Regresso a Casa: Entre o Amor de Irmã e a Tempestade do Casamento

— Mariana, não podes continuar aqui. Isto já passou dos limites! — A voz de Rui ecoou pela sala, cortando o silêncio pesado que pairava desde o jantar.

Senti o sangue gelar-me nas veias. Olhei para a minha irmã, à espera de um gesto, uma palavra que me defendesse. Mas Mariana apenas baixou os olhos, brincando nervosamente com a aliança no dedo.

— Rui, por favor… — murmurou ela, quase inaudível.

Eu queria gritar, queria perguntar-lhe porque não me defendia. Afinal, eu era a irmã dela. Sempre fui. Desde pequenas, éramos inseparáveis. Mas agora, depois de tudo o que aconteceu, parecia que um abismo se tinha aberto entre nós.

O regresso a Lisboa não tinha sido fácil. Depois de perder o emprego no Porto e ver o meu namoro de três anos ruir como um castelo de cartas, não me restou outra opção senão pedir abrigo à minha única família. Mariana acolheu-me de braços abertos, como sempre fez. Rui… nem tanto.

No início, tentei não incomodar. Arrumei as minhas coisas no pequeno quarto de hóspedes, ajudei nas tarefas da casa, procurei trabalho todos os dias. Mas a tensão era palpável. Rui evitava-me, e quando não conseguia, lançava-me olhares frios, como se eu fosse uma intrusa na própria casa da minha irmã.

Numa noite chuvosa de novembro, tudo explodiu. Rui chegou tarde do trabalho e encontrou-me e Mariana a rir na cozinha, a recordar histórias da infância em Évora. Ele entrou sem dizer nada, mas o olhar dele era um trovão prestes a rebentar.

— Sempre as duas — disse ele, com desdém. — Parece que não há espaço para mais ninguém nesta casa.

Mariana tentou acalmar-lhe os ânimos, mas Rui estava irredutível. Acusou-me de ser a razão pela qual eles discutiam tanto ultimamente. Disse que eu estava a roubar-lhe a mulher, que Mariana já não lhe dava atenção desde que eu voltara.

— Isto não é justo — atirei eu, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Só estou aqui porque preciso…

— Pois esse é o problema! — interrompeu Rui. — Sempre precisas de alguma coisa! E a Mariana está sempre pronta para te salvar!

Mariana chorava em silêncio. Eu queria abraçá-la, mas ela afastou-se ligeiramente. Senti-me sozinha como nunca.

Os dias seguintes foram um inferno. Mariana tentava agradar a ambos, mas era impossível. Rui tornou-se mais distante e frio; eu sentia-me cada vez mais um peso morto. Comecei a sair mais vezes só para não estar em casa. Procurava trabalho desesperadamente, mas nada surgia.

Uma tarde, ao regressar de mais uma entrevista falhada, encontrei Mariana sentada no sofá, olhos vermelhos de tanto chorar.

— O Rui foi para casa dos pais — disse ela, voz trémula.

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Ficámos assim muito tempo, sem dizer palavra.

— Achas que isto é culpa minha? — perguntei finalmente.

Mariana abanou a cabeça, mas não me olhou nos olhos.

— Não sei… Sinto-me tão perdida…

O silêncio entre nós era agora um muro intransponível. Eu queria dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas nem eu acreditava nisso.

Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei deitada a olhar para o teto, a pensar em tudo o que perdera: o emprego, o namorado, agora talvez até a minha irmã. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — contra Rui, contra Mariana, contra mim própria por ser sempre tão dependente dos outros.

No dia seguinte, decidi sair cedo. Andei pelas ruas de Lisboa sem rumo certo. Sentei-me num banco do Jardim da Estrela e chorei como há muito não chorava. Lembrei-me da infância com Mariana: as brincadeiras no quintal dos avós, as noites em que partilhávamos segredos e sonhos. Como é que tudo se tinha tornado tão complicado?

Recebi uma mensagem de Mariana: “Precisamos falar.”

Voltei para casa com o coração apertado. Mariana estava na cozinha, olhos inchados mas decididos.

— Falei com o Rui — começou ela. — Ele acha melhor eu escolher entre ti e ele.

Senti um nó na garganta.

— E tu? O que queres?

Ela hesitou.

— Não sei… És minha irmã… Mas ele é meu marido…

— Não tens de escolher — disse eu rapidamente. — Posso ir embora… arranjar um quarto noutro lado…

Mariana abanou a cabeça.

— Não quero perder-te… Mas também não quero perder o Rui…

Ficámos ali sentadas em silêncio. Pela primeira vez percebi que talvez estivesse mesmo a ser um peso na vida dela. Talvez Rui tivesse razão: eu estava sempre a precisar dela.

Nessa noite tomei uma decisão difícil: ia sair dali. Arranjei um quarto numa casa partilhada em Arroios com outras três raparigas desconhecidas. Quando contei à Mariana, ela chorou muito mas compreendeu.

No dia em que saí, Mariana abraçou-me com força:

— Desculpa… Desculpa por tudo…

— Não tens de pedir desculpa — respondi-lhe. — Só quero que sejas feliz.

Os meses seguintes foram duros. A solidão pesava-me nos ombros como uma pedra. O trabalho continuava difícil de encontrar; aceitei empregos temporários em cafés e lojas só para pagar as contas. Às vezes encontrava Mariana para almoçar; ela parecia mais tranquila, mas havia sempre uma sombra nos olhos dela quando falávamos do passado.

Um dia recebi uma mensagem dela: “Preciso falar contigo.” Fui ter com ela ao nosso café habitual. Mariana estava pálida e nervosa.

— Vou separar-me do Rui — disse ela sem rodeios.

Fiquei sem palavras.

— Não é por tua causa — apressou-se ela a dizer. — Já não dava há muito tempo… Só agora tive coragem de admitir.

Abraçámo-nos ali mesmo no café, as duas a chorar como crianças.

Hoje olho para trás e vejo como tudo foi doloroso mas necessário. Eu precisava aprender a viver por mim própria; Mariana precisava perceber quem era sem estar presa às expectativas dos outros.

A vida nunca é simples; as relações familiares menos ainda. Mas será que alguma vez deixamos verdadeiramente de precisar uns dos outros? Ou será esse o verdadeiro laço que nos mantém juntos apesar das tempestades?