Regras no Meu Frigorífico: Um Relato de Confiança Perdida
— Mãe, não leves isto a mal, mas achámos melhor pôr algumas regras para todos cá em casa — disse o Rui, o meu filho, com a voz trémula, enquanto a Ana, a minha nora, desviava o olhar para o chão.
O papel colado no frigorífico parecia gritar comigo. “Não mexer nos armários sem pedir.” “Avisar antes de trazer visitas.” “Não usar a máquina de lavar depois das 22h.” Cada linha era uma facada. Senti o peito apertar-se, como se o ar me faltasse. A minha própria casa, onde criei o Rui sozinha depois que o pai dele nos deixou, agora tinha regras impostas por ele e pela mulher. Regras para mim.
— Isto é sério? — perguntei, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. — Acham mesmo que preciso disto?
O Rui suspirou, passou a mão pelo cabelo como fazia em criança quando estava nervoso.
— Mãe, não é por mal… Só queremos que todos se sintam confortáveis. A casa agora é de todos.
De todos? Não era esta a casa onde eu trabalhei noites inteiras para pagar a renda? Onde costurei vestidos para vizinhas até às tantas para garantir que o Rui nunca passava fome? Agora era “de todos”?
A Ana finalmente falou:
— Dona Teresa, não leve a mal… Só queremos evitar confusões. Às vezes há barulho à noite, ou coisas desaparecem dos armários…
— Coisas desaparecem? — interrompi, sentindo o sangue ferver. — Estás a insinuar que eu roubo comida?
O silêncio caiu pesado. O Rui olhou para a Ana, que encolheu os ombros.
— Não é isso, mãe… — murmurou ele. — Só queremos ordem.
Senti-me pequena. Invisível. Lembrei-me dos tempos em que o Rui vinha ter comigo à cama porque tinha pesadelos e eu lhe cantava baixinho até adormecer. Agora era um homem feito, casado, e eu era um estorvo.
Naquela noite não consegui dormir. Oiço-os a cochichar no quarto deles. Sinto-me uma intrusa na minha própria vida. Oiço as vozes abafadas:
— Achas que ela vai perceber? — pergunta a Ana.
— Não sei… Mas não aguento mais discussões por causa das coisas dela espalhadas pela sala.
A vergonha misturou-se com raiva. Passei a noite a pensar em tudo o que fiz por eles. O Rui nunca soube metade dos sacrifícios que fiz para lhe dar uma vida digna. E agora era eu quem precisava de pedir licença para usar a máquina de lavar?
No dia seguinte tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço como sempre. Mas ninguém apareceu à mesa. O cheiro do café ficou no ar, misturado com o silêncio. Senti-me sozinha como nunca.
Ao fim da tarde, tentei falar com o Rui:
— Filho, precisamos conversar.
Ele estava sentado no sofá, olhos colados ao telemóvel.
— Agora não, mãe. Estou ocupado.
A Ana entrou na sala com um saco de compras e nem me olhou nos olhos.
— Trouxe coisas para o jantar — disse ela ao Rui, ignorando-me.
Senti-me transparente. Como se já não fizesse parte daquela família.
Os dias passaram e as regras tornaram-se uma barreira invisível entre nós. Cada vez que precisava de algo da cozinha, hesitava antes de abrir um armário. Comecei a evitar sair do quarto para não incomodar. O Rui e a Ana pareciam aliviados com a minha ausência.
Uma noite ouvi-os discutir:
— Não podemos continuar assim! — exclamou a Ana. — A tua mãe está sempre aqui! Não temos privacidade!
— O que queres que eu faça? Ela não tem para onde ir!
As palavras dele doeram mais do que qualquer regra escrita num papel.
No dia seguinte, decidi sair cedo e caminhar pelo bairro. Passei pela mercearia onde conhecia toda a gente há anos. A dona Rosa olhou para mim com pena:
— Está tudo bem, Teresa? Pareces cansada…
Sorri, mas senti as lágrimas nos olhos.
— São coisas de família… — murmurei.
Ela assentiu com compreensão. Todos ali sabiam como era difícil envelhecer sozinha em Lisboa, com filhos adultos que já não precisavam de nós.
Quando voltei para casa, encontrei o Rui à minha espera na sala.
— Mãe, precisamos mesmo de conversar.
Sentei-me devagar no sofá.
— Diz lá, filho.
Ele hesitou antes de falar:
— Eu e a Ana achamos melhor procurares outro sítio para ficar… Pelo menos por uns tempos.
O chão fugiu-me dos pés.
— Vais pôr-me fora da minha própria casa?
Ele desviou o olhar.
— Não é isso… Mas precisamos de espaço. E tu também mereces paz.
Paz? Era isso que chamavam ao abandono?
Levantei-me devagar, sentindo o peso dos anos nos ombros.
— Sabes quantas noites passei acordada por tua causa? Quantas vezes deixei de comer para tu teres comida? Agora sou eu quem incomoda?
O Rui não respondeu. A Ana apareceu à porta do corredor, braços cruzados.
— Não é justo para ninguém — disse ela friamente.
Arrumei as minhas coisas em silêncio naquela noite. Cada peça de roupa dobrada era uma memória perdida: o vestido que usei no batizado do Rui; o lenço que me deu quando entrou na faculdade; as cartas que escrevi ao pai dele quando ainda sonhávamos com uma família feliz.
Fui viver para casa da minha irmã Maria em Almada. Ela recebeu-me de braços abertos, mas vi nos olhos dela a preocupação: “E agora, Teresa? O que vais fazer da tua vida?”
Os dias passaram lentos e pesados. Sentia falta do cheiro da minha casa, do barulho do elétrico na rua, até das discussões à mesa. A Maria tentava animar-me:
— Eles vão arrepender-se, vais ver…
Mas eu sabia que nada voltaria a ser como antes.
Um dia recebi uma mensagem do Rui: “Mãe, desculpa por tudo. Podemos falar?”
O coração bateu mais forte. Liguei-lhe com mãos trémulas.
— Olá mãe… — disse ele baixinho. — Sinto muito pelo que aconteceu. A Ana está grávida e andámos muito stressados… Mas sinto tua falta.
Chorei em silêncio do outro lado da linha.
— Eu também sinto tua falta, filho… Mas há coisas que não se esquecem facilmente.
Ele prometeu visitar-me com mais frequência. Mas as visitas foram-se espaçando cada vez mais. A vida seguiu sem mim na casa onde dei tudo de mim por ele.
Agora passo os dias sentada à janela da Maria, vendo os miúdos brincarem na rua e perguntando-me onde foi que errei. Será que fui demasiado protetora? Será que devia ter imposto mais limites quando ele era pequeno? Ou será simplesmente assim que as famílias mudam?
Às vezes olho para trás e pergunto-me: será possível reconstruir uma relação depois de tanta mágoa? Ou há feridas que nunca saram? E vocês, já sentiram algo assim dentro da vossa própria família?