Recusando-me a Aceitar uma Vida que Não Escolhi: A História de Cristina

— Benjamin! — gritei pela terceira vez, já com a voz embargada pela exaustão. O eco do meu próprio chamado foi a única resposta que recebi. O silêncio da casa parecia zombar de mim, enquanto eu arrastava os sacos das compras até à cozinha, sentindo cada músculo protestar. O relógio marcava quase oito da noite e eu ainda tinha de preparar o jantar, arrumar a casa e, quem sabe, encontrar um momento para mim. Mas esse momento nunca chegava.

Enquanto pousava as compras na bancada, ouvi finalmente passos pesados no corredor. Benjamin apareceu à porta, olhos colados ao telemóvel.

— Não ouviste que te chamei? — perguntei, tentando controlar o tom.

Ele encolheu os ombros, sem sequer levantar o olhar.

— Estava ocupado. — respondeu seco.

O nó na garganta apertou-se. Era sempre assim. Eu fazia tudo, ele fazia nada. E eu… eu odiava o meu trabalho. Odiava a rotina, odiava sentir-me invisível dentro da minha própria casa. Mas o que mais odiava era a sensação de estar presa numa vida que não escolhi.

Enquanto cortava cebolas para o refogado, as lágrimas misturavam-se com o cheiro forte que subia da tábua. Não sabia se chorava pela cebola ou pela vida. Lembrei-me de quando era miúda, em Vila Nova de Gaia, e sonhava ser escritora. Escrevia poemas escondida no caderno azul que a minha mãe me oferecera no Natal dos meus dez anos. Mas agora… agora era só Cristina, a funcionária administrativa de uma empresa de seguros que ninguém conhecia.

O jantar foi servido em silêncio. Benjamin comeu apressado e voltou para o quarto. Eu fiquei ali, sozinha à mesa, olhando para o prato vazio. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não podia continuar assim.

Na manhã seguinte, acordei antes do despertador. Fiquei deitada a olhar para o teto, ouvindo o som distante dos carros na rua. Senti uma vontade quase física de não me levantar, de não ir trabalhar naquele escritório cinzento onde ninguém sorria e todos fingiam estar bem. Mas levantei-me na mesma. Tomei banho, vesti-me mecanicamente e saí sem dizer uma palavra.

No autocarro, olhei para as pessoas à minha volta: rostos fechados, olhares perdidos no vazio ou nos telemóveis. Perguntei-me quantos deles estariam a viver a vida que queriam. Quantos estariam apenas a sobreviver?

No trabalho, a rotina era sempre igual: pilhas de papéis, chamadas intermináveis, colegas que só falavam do tempo ou das promoções do supermercado. A minha chefe, Dona Amélia, era uma mulher amarga que parecia alimentar-se do desânimo alheio.

— Cristina, preciso destes relatórios até ao meio-dia! — gritou ela do outro lado da sala.

Assenti em silêncio. Senti o peito apertar-se. Era sempre assim: exigências sem reconhecimento, trabalho sem paixão.

Ao almoço, sentei-me com a Ana, a única colega com quem me dava verdadeiramente.

— Estás com um ar péssimo — disse ela, olhando-me nos olhos.

— Sinto-me presa — confessei. — Não aguento mais isto…

Ela suspirou.

— Já pensaste em mudar? Procurar outra coisa?

Sorri amargamente.

— E fazer o quê? Tenho contas para pagar, uma casa para manter… E o Benjamin não ajuda em nada.

Ana ficou em silêncio por uns segundos.

— Às vezes é preciso arriscar, Cristina. Senão vais passar a vida inteira assim…

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante toda a tarde. Quando cheguei a casa nesse dia, Benjamin estava no sofá a jogar PlayStation.

— Olha lá — comecei, tentando manter a calma — já pensaste em procurar trabalho? Ou ajudar mais aqui em casa?

Ele nem sequer tirou os olhos do ecrã.

— O meu tempo vai chegar — respondeu com desdém.

Senti uma raiva tão grande que tive vontade de atirar-lhe com qualquer coisa. Mas limitei-me a ir para o quarto e fechar a porta com força.

Nessa noite não dormi. Fiquei horas a olhar para o teto, a pensar na minha vida. Lembrei-me da minha mãe, da força dela quando ficou sozinha com dois filhos pequenos depois do meu pai nos ter deixado por outra mulher. Lembrei-me das noites em que ela chorava baixinho na cozinha para não nos acordar. Sempre me prometi que nunca seria como ela: nunca aceitaria menos do que mereço.

Na manhã seguinte tomei uma decisão. Cheguei ao trabalho e fui direta ao gabinete da Dona Amélia.

— Preciso falar consigo — disse-lhe, sentindo as mãos suadas.

Ela olhou-me por cima dos óculos.

— Diga.

— Vou apresentar a minha demissão — disse num fôlego só.

Ela ficou boquiaberta durante uns segundos.

— Tem noção do que está a fazer? No mercado como está?

Assenti.

— Tenho sim. Não posso continuar aqui.

Saí do gabinete sentindo um misto de medo e alívio. Pela primeira vez em anos sentia-me dona de mim mesma.

Quando contei ao Benjamin à noite, ele explodiu.

— Estás maluca? Como é que vamos pagar as contas? Achas que podes simplesmente desistir?

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Não estou a desistir de nada. Estou a escolher-me a mim própria pela primeira vez.

Ele bufou e saiu porta fora. Fiquei sozinha na sala, mas não me senti só. Senti-me livre.

Os dias seguintes foram difíceis. A minha mãe ligou-me assim que soube da notícia.

— Cristina, filha… tens a certeza? O país está complicado…

— Mãe, eu não aguentava mais — respondi entre lágrimas. — Preciso tentar outra coisa…

Ela suspirou do outro lado da linha.

— Só quero que sejas feliz… mas tens de ser forte.

Procurei trabalho durante semanas sem sucesso. O dinheiro começou a escassear e as discussões com Benjamin tornaram-se diárias. Ele culpava-me por tudo: pelas contas atrasadas, pela comida mais simples na mesa, pelo cansaço dele próprio.

Uma noite chegou bêbado e começou a gritar comigo:

— És uma ingrata! Se não fosses tão orgulhosa ainda tinhas emprego!

Senti medo pela primeira vez desde que tudo começara. Tranquei-me no quarto e chorei até adormecer.

No dia seguinte tomei outra decisão: Benjamin tinha de sair da minha vida. Liguei à Ana e pedi-lhe ajuda para encontrar um quarto temporário enquanto punha ordem na casa e na cabeça.

Quando Benjamin chegou nessa noite, fui direta:

— Quero que saias daqui hoje mesmo.

Ele riu-se na minha cara.

— Achas que vais conseguir sozinha? És patética!

Mas eu já não era aquela Cristina submissa de há meses atrás.

— Prefiro ser patética sozinha do que miserável contigo — respondi firme.

Ele saiu batendo com a porta e eu fiquei ali, sentada no chão da sala vazia, sentindo um misto de dor e esperança.

Os meses seguintes foram os mais difíceis da minha vida: vendi algumas coisas para pagar as contas atrasadas, fiz biscates como empregada doméstica e comecei finalmente a escrever outra vez — textos pequenos para blogs locais e crónicas sobre mulheres portuguesas que lutam todos os dias contra o invisível.

Aos poucos fui reconstruindo-me. A relação com a minha mãe melhorou; ela passou a respeitar as minhas escolhas mesmo sem as compreender totalmente. A Ana tornou-se minha irmã de coração; juntas ríamos das nossas desgraças e celebrávamos cada pequena vitória como se fosse um prémio Nobel.

Hoje ainda não sou escritora famosa nem tenho estabilidade financeira garantida. Mas sou livre. E todos os dias acordo com vontade de viver — mesmo quando tudo parece difícil demais.

Às vezes pergunto-me: quantas Cristinas há por aí presas numa vida que não escolheram? Quantas terão coragem de dar o salto? E vocês… já se escolheram alguma vez?