Quatro Paredes, Quatro Vidas: O Drama de Viver Num T0 com a Família Toda
— Não podes simplesmente deixar as tuas coisas espalhadas por todo o lado, mãe! — gritei, tentando não acordar o Tomás, que dormia enroscado no sofá-cama, o único lugar onde ainda conseguíamos fingir que havia privacidade.
A minha mãe olhou para mim com aquele olhar de quem já viu demasiado da vida para se importar com as minhas birras. — Filha, eu não tenho onde pôr as coisas! Achas que eu queria estar aqui? Achas mesmo?
O João, o meu marido, tentava manter-se neutro, mas vi-lhe nos olhos o cansaço. Desde que a minha mãe se mudara para o nosso T0 em Arroios, Lisboa, há três semanas, a tensão era palpável. O nosso filho Tomás, de quatro anos, já perguntava porque é que a avó dormia na nossa cama e porque é que ele tinha de dormir no sofá. Eu própria já não sabia responder.
Tudo começou numa manhã de chuva, quando ouvi a campainha tocar insistentemente. Abri a porta e vi a minha mãe, Maria do Carmo, com duas malas enormes e uma expressão que misturava orgulho ferido e desespero. — Filha, fui despejada. O senhorio quer vender o apartamento. Não tenho para onde ir.
O João ficou branco. Eu tentei sorrir e dizer que íamos dar um jeito. Mas como? O nosso T0 mal tinha espaço para nós três. A cozinha era um canto com dois armários e um fogão elétrico; a casa de banho era tão pequena que tínhamos de sair para nos secarmos depois do banho. E agora éramos quatro.
Na primeira noite, tentei ser otimista. — Vai correr tudo bem — disse ao João enquanto dobrávamos as roupas do Tomás para caberem numa caixa debaixo da mesa. — É só até a mãe arranjar outro sítio.
Mas os dias passaram e a minha mãe não conseguia encontrar nada que pudesse pagar com a reforma miserável que recebia. Lisboa estava impossível. Os preços dos quartos eram absurdos. E ela não queria ir para longe de nós nem para um lar.
As discussões começaram logo na primeira semana. A minha mãe implicava com tudo: o João deixava migalhas na bancada, eu demorava demasiado tempo na casa de banho, o Tomás fazia barulho a brincar. O João começou a chegar mais tarde do trabalho só para evitar o ambiente pesado.
Uma noite, depois de adormecer o Tomás (ou melhor, depois de ele adormecer exausto no sofá enquanto via desenhos animados no telemóvel), sentei-me à mesa com a minha mãe.
— Mãe, tens de perceber que isto não pode ser para sempre. O João está a ficar maluco. Eu também. Não temos espaço nem para respirar.
Ela olhou-me nos olhos e vi lágrimas a formarem-se. — Achas que eu não sei? Achas que eu não me sinto um peso? Mas onde é que eu vou? Não tenho ninguém além de vocês.
Senti-me péssima. Sempre tive uma relação difícil com a minha mãe desde que o meu pai nos deixou quando eu tinha dez anos. Ela foi dura comigo, exigente, pouco dada a carinhos. Mas agora era ela quem precisava de mim.
O Tomás começou a ter pesadelos. Acordava a meio da noite a chorar porque queria dormir na nossa cama, mas lá estava a avó. O João dormia mal e começou a fumar outra vez na varanda minúscula, mesmo sabendo que eu detestava.
Um sábado à tarde, quando finalmente consegui convencer o Tomás a brincar no parque ao lado de casa, sentei-me num banco e chorei baixinho. Uma vizinha idosa aproximou-se e perguntou se estava tudo bem. Contei-lhe tudo – ou quase tudo – e ela disse-me: — Filha, família é isto mesmo: às vezes sufoca, mas é o que temos.
Voltei para casa determinada a encontrar uma solução. Falei com colegas do trabalho sobre lares acessíveis, procurei quartos em zonas menos centrais para a minha mãe, até sugeri irmos todos viver para fora de Lisboa. O João ficou furioso: — Eu não vou largar o meu emprego por causa da tua mãe! Já chega!
A tensão explodiu numa noite em que o Tomás fez xixi na cama do sofá e a minha mãe reclamou alto demais. O João perdeu a cabeça:
— Isto não é vida! Não aguento mais! Ou ela vai embora ou eu vou!
Fiquei paralisada. O Tomás chorava no meio do caos, agarrado ao boneco preferido. A minha mãe saiu porta fora sem dizer nada e só voltou horas depois.
Nessa noite não dormi. Senti-me dividida entre o marido e a mãe, entre o passado e o presente, entre o dever e o amor próprio.
No dia seguinte, sentei-me com ambos à mesa da cozinha apertada.
— Isto não pode continuar assim — disse eu, com voz trémula. — Mãe, vamos procurar juntas uma solução. João, preciso que me ajudes nisto. Somos uma família.
O João suspirou fundo e olhou para mim como se visse pela primeira vez a mulher por quem se apaixonou há dez anos.
— Eu ajudo — disse ele finalmente — mas precisamos de regras aqui em casa até encontrarmos uma saída.
Fizemos um horário para usar a casa de banho, dividimos tarefas domésticas e tentámos dar ao Tomás algum tempo só connosco nem que fosse um passeio ao fim-de-semana.
As coisas não ficaram perfeitas – longe disso – mas aprendemos a sobreviver juntos naquele espaço minúsculo. A minha mãe acabou por conseguir um quarto numa casa partilhada em Benfica ao fim de dois meses. No dia em que fez as malas para sair, abraçou-me como nunca antes.
— Desculpa ter sido tão dura contigo todos estes anos — sussurrou ela.
Chorei como uma criança.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim hoje em dia? Quantos sacrifícios cabem entre quatro paredes? E será que algum dia vamos ter espaço suficiente – não só nas casas, mas nos corações?