Quatro Paredes e Sonhos Estilhaçados: A Minha Luta por um Lar de Verdade
— Outra vez arroz com atum, Tamara? — A voz do Leonel ecoou pela cozinha minúscula, carregada de cansaço e desilusão. Senti o rubor subir-me ao rosto, mas mantive-me calada. O Nuno brincava no tapete gasto da sala, alheio à tensão que pairava no ar. O cheiro do arroz misturava-se com o do mofo entranhado nas paredes, e eu só queria desaparecer.
Não era só o jantar. Era tudo. Era a falta de espaço, a falta de dinheiro, a falta de tempo para sonhar. Era o olhar do Leonel, cada vez mais distante, como se eu fosse apenas mais uma peça do mobiliário velho que herdámos da minha mãe. Era o silêncio entre nós, mais pesado do que qualquer discussão.
Lembro-me de quando nos mudámos para aqui, há cinco anos. Tínhamos planos, promessas sussurradas ao ouvido nas noites quentes de verão. “Vamos juntar dinheiro para uma casa maior”, dizia ele. “O Nuno vai ter um quarto só dele.” Mas os anos passaram e os sonhos foram-se encolhendo até caberem neste T2 húmido e escuro.
— Não é só o jantar, Tamara — continuou ele, baixando a voz. — É tudo igual. Todos os dias iguais.
Quis responder-lhe que também sentia isso, que me doía ver-nos assim. Mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, virei-me para o fogão e mexi o arroz com força desnecessária.
À noite, depois de deitar o Nuno, sentei-me na varanda minúscula a fumar um cigarro escondido. Olhei para as luzes dos outros apartamentos, imaginando as vidas lá dentro. Será que também discutiam por causa do jantar? Será que também sentiam este vazio?
A minha mãe liga-me todos os domingos. Pergunta sempre se está tudo bem. Minto-lhe. “Está tudo ótimo, mãe.” Não quero preocupá-la, já basta o que ela passou com o meu pai — um homem amargo, sempre pronto a descarregar a frustração em quem estivesse mais perto.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre contas por pagar, Leonel atirou:
— Se tivesses arranjado um trabalho melhor…
Fiquei gelada. Eu trabalhava num supermercado desde os 18 anos. Horários rotativos, ordenado mínimo. Já tinha tentado procurar outra coisa, mas sem estudos era difícil. E quem ficava com o Nuno? A creche era cara demais.
— Achas que não faço tudo o que posso? — perguntei-lhe, a voz trémula.
Ele não respondeu. Saiu para beber com os amigos e voltou tarde, a cheirar a cerveja barata.
Os dias foram passando assim: discussões abafadas para não acordar o Nuno, silêncios longos à mesa do pequeno-almoço, olhares fugidios no corredor. Comecei a sentir-me invisível, como se fosse apenas uma sombra a deslizar pelas divisões da casa.
Um sábado à tarde, enquanto dobrava roupa no quarto do Nuno, ouvi-o perguntar:
— Mãe, porque é que tu e o pai estão sempre tristes?
O nó na garganta apertou-se ainda mais. Sentei-me ao lado dele na cama pequena e abracei-o com força.
— Não estamos tristes, amor. Só estamos cansados.
Mas ele não pareceu convencido.
Na semana seguinte, recebi uma carta do senhorio: queria aumentar a renda. O coração caiu-me aos pés. Já mal conseguíamos pagar o que era agora — como íamos conseguir mais?
Mostrei a carta ao Leonel quando chegou do trabalho. Ele leu-a em silêncio e depois atirou-a para cima da mesa.
— Isto é impossível… — murmurou.
— E agora? — perguntei eu, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
Ele passou as mãos pelo cabelo e olhou para mim como se me visse pela primeira vez em meses.
— Não sei… Talvez tenhamos de ir para casa da tua mãe por uns tempos.
A ideia de voltar à casa onde cresci — onde tantas vezes jurei que nunca mais voltaria — deixou-me sem ar.
— Não podemos… O Nuno já está habituado à escola aqui…
— Então arranja tu uma solução! — gritou ele de repente.
O Nuno apareceu à porta do quarto com os olhos muito abertos.
— Estão a gritar porquê?
Corri para ele e abracei-o outra vez. Senti-me tão pequena.
Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto manchado de humidade e a pensar em todas as escolhas que me trouxeram até aqui. Lembrei-me dos sonhos antigos: ser professora primária, ter uma casa com jardim, ver o Nuno brincar ao sol. Onde é que me perdi?
No dia seguinte fui trabalhar como sempre. A dona Rosa reparou no meu ar cansado.
— Estás bem, menina Tamara?
Quase chorei ali mesmo na secção dos frescos.
— Só estou cansada…
Ela pousou uma mão no meu ombro.
— Não deixes que te roubem a alegria, filha. A vida é dura mas tu és mais dura ainda.
Essas palavras ficaram comigo todo o dia. Quando cheguei a casa, Leonel estava sentado à mesa com uma folha de papel à frente.
— Estive a fazer contas — disse ele sem me olhar nos olhos. — Se cada um arranjar um segundo emprego ao fim de semana… talvez consigamos aguentar mais uns meses aqui.
Olhei para ele e vi o homem por quem me apaixonei há tantos anos atrás: vulnerável, assustado, mas ainda ali comigo na luta.
— Vamos tentar — disse eu baixinho.
Os meses seguintes foram um turbilhão: turnos duplos no supermercado para mim; Leonel a descarregar camiões ao sábado; pouco tempo juntos; quase nenhum tempo para o Nuno. Mas conseguimos pagar a renda aumentada — por enquanto.
Uma noite, depois de adormecer o Nuno (que agora pedia todas as noites para dormir connosco), sentei-me na varanda outra vez. As luzes da cidade pareciam mais distantes do que nunca.
Leonel juntou-se a mim em silêncio. Ficámos ali sentados lado a lado durante muito tempo sem dizer nada.
Finalmente perguntei:
— Achas que algum dia vamos sair daqui?
Ele não respondeu logo. Depois pousou a mão na minha e apertou-a com força.
— Não sei… Mas enquanto estivermos juntos…
As lágrimas correram-me pelo rosto sem eu conseguir controlar.
Hoje escrevo estas palavras sem saber se amanhã terei um teto sobre a cabeça ou se terei de voltar à casa da minha mãe com o rabo entre as pernas. Mas sei isto: não sou só eu que luto contra paredes apertadas e sonhos partidos nesta cidade cara e indiferente. Quantas Tamaras há por aí? Quantos sonhos se perdem entre contas por pagar e silêncios pesados?
Será que algum dia vamos conseguir transformar estas quatro paredes num verdadeiro lar? E vocês — também sentem às vezes que estão presos numa vida demasiado pequena para os vossos sonhos?