Quatro Casas da Božena – Uma História de Ganância e Feridas Familiares
— Não me olhes assim, Ana. O que é meu por direito, vou buscar — disse a Božena, com aquela voz fria que só usava quando queria magoar. O sol entrava pela janela da sala, iluminando as fotografias antigas na parede. Eu sentia o peito apertado, as mãos trémulas, enquanto a minha mãe, sentada ao meu lado, tentava conter as lágrimas.
Nunca pensei que a minha irmã, a Božena, pudesse chegar tão longe. Sempre foi ambiciosa, é verdade — desde pequena queria ser a melhor em tudo. Mas agora, com quatro casas no Porto, queria também a nossa casa de família em Vila Nova de Gaia. Aquela casa onde crescemos, onde o pai nos ensinou a andar de bicicleta no quintal e a mãe fazia arroz doce nos aniversários.
— Božena, tu já tens tanto… — murmurei, quase sem voz. — Porque é que queres isto? Porque é que queres tirar-nos o pouco que nos resta?
Ela sorriu, um sorriso duro, quase cruel. — Porque posso. Porque está no testamento do pai. E porque vocês nunca souberam dar valor ao que tinham.
A mãe soluçou baixinho. Eu abracei-a, sentindo-me tão pequena e impotente como quando era criança e ouvia os gritos dos meus pais na cozinha. A Božena sempre foi a preferida do pai. Eu era a filha calma, que ficava no canto a desenhar, enquanto ela conquistava medalhas e elogios.
Depois da morte do pai, tudo mudou. A Božena tornou-se ainda mais distante, quase uma estranha. Só vinha à casa para buscar papéis ou discutir contas. Quando soube que herdara parte igual da casa, ficou furiosa. Queria tudo para ela.
— Vou pôr isto em tribunal — disse ela naquele dia. — Ou vendem-me a vossa parte ou saem daqui.
A mãe agarrou-me a mão com força. — Esta casa é tudo o que tenho, Božena… Por favor…
Mas ela não cedeu. Dias depois, recebemos uma carta do advogado dela. Um papel frio, cheio de palavras difíceis: “partilha forçada”, “alienação”, “direito de preferência”. O mundo desabou sobre nós.
As noites tornaram-se longas e cheias de insónia. A mãe chorava baixinho no quarto dela; eu passava horas a olhar para o teto, tentando perceber onde errámos. Lembrei-me das tardes em que brincávamos no jardim, das discussões à mesa do jantar, dos natais em família antes de tudo se partir.
Tentei falar com a Božena várias vezes. Liguei-lhe, mandei mensagens. Só respondia com frases curtas: “É o melhor para todos”, “Não compliques”. Uma vez encontrei-a à porta da casa, com um homem de fato — o agente imobiliário dela.
— Vais mesmo vender? Vais mesmo fazer isto connosco aqui dentro? — perguntei-lhe, com a voz embargada.
Ela encolheu os ombros. — O mundo não é justo, Ana. Aprende isso.
A mãe adoeceu pouco depois. Os médicos disseram que era stress, ansiedade. Eu fazia tudo para animá-la: levava-lhe chá à cama, lia-lhe os jornais em voz alta, tentava sorrir mesmo quando só me apetecia gritar.
Os vizinhos começaram a comentar. “A Božena sempre foi assim”, diziam uns. “Mas tirar a casa à própria mãe? Que vergonha…” Outros diziam que era inveja minha porque nunca tive sucesso como ela.
Uma noite, sentei-me sozinha na cozinha escura e escrevi uma carta à Božena:
“Querida irmã,
Lembras-te quando éramos pequenas e fazíamos cabanas com os lençóis da mãe? Lembras-te das histórias que inventávamos sobre princesas e dragões? O que aconteceu connosco? Porque é que agora somos inimigas? Peço-te só uma coisa: não tires à mãe o pouco que lhe resta de felicidade. Não tires o nosso lar.”
Nunca tive resposta.
O processo arrastou-se durante meses. Advogados, papéis, reuniões frias num escritório no centro do Porto. A Božena nem olhava para mim ou para a mãe; falava só com o advogado dela.
No dia em que recebemos a ordem para sair da casa, senti-me morrer por dentro. A mãe ficou sentada no sofá durante horas, sem dizer palavra. Eu arrumei as nossas coisas em caixas de cartão: as fotografias antigas, os livros do pai, os bordados da avó.
Na última noite na casa, sentei-me no chão do meu antigo quarto e chorei como nunca tinha chorado antes. Senti raiva da Božena, do pai por ter deixado tudo assim, de mim própria por não conseguir proteger a minha mãe.
Mudámo-nos para um pequeno apartamento arrendado nos arredores da cidade. A mãe nunca mais foi a mesma; passou a maior parte dos dias calada, olhando pela janela.
Soube pelos vizinhos que a Božena vendeu logo a casa por um bom preço. Comprou mais um apartamento no centro do Porto — o quinto dela.
Durante meses evitei cruzar-me com ela. Mas um dia encontrei-a por acaso num café perto do trabalho.
— Olá, Ana — disse ela, como se nada tivesse acontecido.
Olhei-a nos olhos e vi apenas vazio.
— Valeu a pena? — perguntei-lhe baixinho.
Ela não respondeu. Pagou o café e saiu sem olhar para trás.
Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível que o dinheiro valha mais do que uma família? Como é possível perdoar alguém que nos tira tudo? Será que algum dia vou conseguir esquecer o rosto da minha mãe naquele último dia na nossa casa?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Conseguiriam perdoar uma irmã assim?