Quatro Anos de Silêncio: Hoje Finalmente Falei
— Não aguento mais, Miguel! — gritei, a voz embargada, as mãos trémulas sobre a mesa da cozinha. O cheiro do café frio misturava-se com o silêncio pesado da nossa casa em Almada. Ele olhou-me como se eu tivesse acabado de partir um vaso antigo, daqueles que nunca se usam mas que ninguém ousa tocar.
— O que é que não aguentas? — perguntou ele, baixo, quase sussurrando, como se tivesse medo de acordar os miúdos no quarto ao lado.
Respirei fundo. Senti o peito apertado, como se cada palavra que guardara durante quatro anos me sufocasse agora. Quatro anos de silêncios, de sorrisos forçados ao jantar, de sonhos adiados porque “não era altura”, de sentimentos escondidos para não perturbar a paz frágil do nosso lar.
Lembro-me do dia em que me casei com o Miguel. A minha mãe chorou de alegria, o meu pai apertou-lhe a mão com força. “É um bom rapaz, Maria. Vai cuidar bem de ti.” E cuidou. Mas cuidar não é amar. Cuidar não é ouvir. Cuidar não é perguntar se ainda sonho ou se já me esqueci de mim.
Durante anos, fui a mulher perfeita: trabalhava no supermercado das sete às três, corria para casa para fazer o jantar, ajudava os miúdos com os trabalhos de casa e sorria para os vizinhos no elevador. Mas à noite, quando todos dormiam, sentava-me na varanda e olhava para o Tejo, perguntando-me onde tinha ficado a Maria que sonhava ser professora, que queria viajar até aos Açores, que adorava escrever poemas num caderno escondido.
O Miguel nunca percebeu. Ou talvez tenha percebido e preferiu não ver. “A vida é assim mesmo”, dizia ele quando eu tentava falar sobre o que sentia. “Tens tudo o que precisas. Não compliques.”
Mas hoje não consegui calar mais. Hoje, quando vi o olhar vazio da minha filha mais velha ao perguntar-me se estava feliz, percebi que não podia continuar a fingir. Não podia ensinar-lhe a ser mulher se eu própria tinha esquecido como se era.
— Não aguento mais fingir que está tudo bem — disse-lhe agora, a voz a tremer. — Não aguento mais esconder quem sou só para manter esta família unida.
O Miguel levantou-se devagar, puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente. O silêncio entre nós era tão denso que quase podia cortá-lo com uma faca.
— Queres ir-te embora? — perguntou ele, sem me olhar nos olhos.
— Não sei — respondi honestamente. — Só sei que preciso de falar. Preciso de ser ouvida.
Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso. — Eu trabalho tanto… Faço tudo por vocês…
— Eu sei — interrompi-o. — Mas não é disso que preciso. Preciso que me perguntes como estou. Preciso que me abraces sem motivo. Preciso que me deixes sonhar outra vez.
Ele ficou calado. Lá fora, ouviam-se os vizinhos a discutir por causa do barulho do cão. Aqui dentro, era o nosso casamento que ladrava alto demais para ser ignorado.
— E os miúdos? — perguntou ele finalmente.
— Os miúdos precisam de uma mãe feliz. Não de uma mãe perfeita.
As lágrimas correram-me pelo rosto sem pedir licença. Senti-me fraca e forte ao mesmo tempo. Fraca por admitir tudo o que escondi; forte por finalmente dizer em voz alta.
A minha mãe sempre dizia: “Mulher sofre calada.” Mas eu já não quero sofrer calada. Quero viver em voz alta.
O Miguel levantou-se e saiu da cozinha sem dizer nada. Fiquei ali sentada, sozinha com o meu medo e com uma estranha sensação de alívio.
Naquela noite dormi no sofá. Ouvi-o andar pela casa, ouvi-o suspirar no corredor. De manhã, preparou o pequeno-almoço para os miúdos e saiu cedo para o trabalho sem me olhar nos olhos.
Durante dias, andámos assim: dois estranhos na mesma casa, cada um a tentar perceber onde tinha falhado. A minha sogra ligou-me: “O Miguel anda estranho… Está tudo bem?” Respondi com um “sim” automático, mas ela percebeu logo pelo tom da minha voz.
No supermercado, as colegas repararam no meu ar cansado. A Dona Rosa puxou-me para o lado: “Maria, tu és forte. Mas até as fortes precisam de chorar.” Chorei ali mesmo, entre as prateleiras dos iogurtes e dos detergentes.
À noite, sentei-me com os miúdos na sala e tentei explicar-lhes que às vezes as mães também ficam tristes. A mais nova abraçou-me: “Eu gosto de ti assim mesmo, mamã.” Senti uma pontada no peito — talvez não estivesse a falhar tanto quanto pensava.
Uma semana depois, o Miguel voltou a falar comigo à mesa da cozinha.
— O que é que queres fazer? — perguntou ele, voz baixa.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Quero voltar a estudar — disse-lhe. — Quero tentar dar aulas à noite. Quero escrever outra vez.
Ele ficou calado durante uns segundos eternos.
— E nós? — perguntou finalmente.
— Nós… só podemos ser felizes se eu também for feliz sozinha primeiro.
Ele abanou a cabeça devagar. — Nunca pensei que estivesses tão infeliz…
— Porque nunca quiseste ver — respondi sem raiva, apenas com tristeza.
Os dias passaram devagarinho depois disso. Comecei a ir à biblioteca depois do trabalho; inscrevi-me num curso noturno na escola secundária da zona; comprei um caderno novo e escrevi o meu primeiro poema em anos:
“Sou mulher feita de silêncios,
de noites frias e sonhos quentes,
de lágrimas escondidas,
de coragem nascida do medo.”
O Miguel começou a ajudar mais em casa. Às vezes sentávamo-nos juntos no sofá sem falar muito; outras vezes discutíamos baixinho para não acordar os miúdos. A vida não ficou perfeita — longe disso — mas ficou mais verdadeira.
A minha mãe veio visitar-me um domingo à tarde e encontrou-me a estudar na varanda.
— Nunca te vi tão viva — disse ela, sorrindo com orgulho e preocupação misturados.
— Tive medo de perder tudo — confessei-lhe.
Ela apertou-me a mão: — Às vezes é preciso perder para nos encontrarmos outra vez.
Hoje olho para trás e vejo quatro anos de silêncio como uma prisão sem grades. Pergunto-me quantas mulheres portuguesas vivem assim: caladas para não incomodar, anuladas para manter as aparências, esquecidas de si mesmas em nome da família.
E agora pergunto-vos: quantas vezes já calaram um sonho por medo? Quantas Marias vivem em silêncio à vossa volta?