“Quantos filhos eu quiser!” – A história de uma família portuguesa em ruínas
— Já chega! Eu vou ter quantos filhos quiser, ouviram? — gritou a Mariana, com os olhos marejados e a voz a tremer, enquanto batia com força na mesa da sala. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O meu pai olhou para o chão, a minha mãe levou as mãos à cabeça e eu, sentada no sofá, senti uma raiva misturada com tristeza a crescer dentro de mim.
Nunca pensei que uma conversa sobre filhos pudesse destruir uma família. Mas naquela noite de julho, com o cheiro do jantar ainda no ar e as janelas abertas para tentar aliviar o calor sufocante de Lisboa, tudo mudou.
A Mariana sempre foi a rebelde da família. Três anos mais nova do que eu, sempre fez questão de desafiar as regras, de contestar tudo o que os nossos pais diziam. Eu, pelo contrário, segui o caminho esperado: licenciatura em Direito, emprego estável num escritório respeitável, namoro sério com o Miguel há cinco anos. A Mariana? Desistiu da faculdade ao fim de dois anos, mudou-se para o Porto com o namorado, arranjou trabalhos temporários e agora estava grávida do segundo filho — aos 26 anos.
A discussão começou como tantas outras. A minha mãe, preocupada, perguntou-lhe como ia sustentar mais uma criança. O meu pai, mais calado mas igualmente ansioso, sugeriu que talvez fosse melhor esperar um pouco antes de aumentar a família. Eu tentei ser diplomática:
— Mariana, só queremos o melhor para ti. Sabes que criar uma criança não é fácil…
Ela interrompeu-me logo:
— Achas que não sei? Achas que não passo noites sem dormir a pensar em contas e fraldas? Mas é a minha vida! Não quero ser como tu, Inês, presa num escritório das oito às oito!
Aquelas palavras doeram mais do que eu queria admitir. Senti-me julgada por fazer tudo “bem”, por ser a filha certinha. Mas também sabia que os meus pais estavam preocupados — não era só medo do futuro da Mariana, era também vergonha do que os vizinhos iam dizer. Em Portugal ainda se fala muito do que os outros pensam.
O jantar acabou em silêncio. A Mariana saiu porta fora, grávida e furiosa. O namorado dela, o Rui, ficou à porta do prédio à espera dela. Vi-os abraçarem-se antes de desaparecerem na noite quente.
Nos dias seguintes, a tensão ficou no ar como uma nuvem negra. A minha mãe chorava baixinho na cozinha. O meu pai refugiou-se no trabalho e quase não falava. Eu tentava ligar à Mariana mas ela não atendia. O Miguel dizia-me para dar tempo ao tempo, mas eu sentia-me impotente.
Passaram-se semanas até voltarmos a falar. Foi no batizado do primeiro filho da Mariana, o pequeno Tomás. A família toda estava lá — tios, avós, primos — mas ninguém sabia bem como agir. A Mariana estava linda, radiante até, mas havia uma tristeza nos olhos dela que só eu parecia ver.
No final da cerimónia, aproximei-me dela:
— Mariana… desculpa. Não queria magoar-te.
Ela olhou para mim durante uns segundos longos demais.
— Não percebes, pois não? Sempre fui o problema desta família. Nunca fui suficiente para vocês.
— Isso não é verdade! — tentei argumentar, mas ela abanou a cabeça.
— É sim. E agora vou fazer as coisas à minha maneira. Mesmo que isso signifique perder-vos.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante semanas. Os meus pais tentaram aproximar-se dela várias vezes, mas cada tentativa acabava em discussões ou silêncios constrangedores. O Rui também se afastou — ouvi dizer que andavam com problemas financeiros e que ele andava mais nervoso do que nunca.
Um dia recebi uma mensagem da Mariana: “Preciso de falar contigo.” O coração bateu-me mais depressa enquanto subia as escadas do prédio dela no Porto. Quando abri a porta, vi-a sentada no chão da sala, rodeada de brinquedos e fraldas sujas. O Tomás chorava no quarto ao lado e ela parecia exausta.
— Não consigo mais — disse ela baixinho. — Sinto-me sozinha. O Rui está sempre a trabalhar e eu… eu não sei se sou capaz.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Pela primeira vez em meses senti que éramos irmãs outra vez.
— Ninguém nasce ensinado — disse-lhe. — E tu és mais forte do que pensas.
Ela chorou no meu ombro durante minutos intermináveis. Depois contou-me tudo: as noites sem dormir, as contas atrasadas, o medo de não conseguir dar aos filhos tudo o que eles precisavam. Disse-me que sentia falta dos nossos pais mas tinha vergonha de pedir ajuda depois de tudo o que disse.
Voltei para Lisboa com o coração apertado. Contei aos meus pais o que se passava e vi nos olhos deles um misto de tristeza e alívio por finalmente saberem a verdade.
No fim de semana seguinte fomos todos ao Porto. A minha mãe levou comida feita em casa e o meu pai ofereceu-se para ajudar com as contas da luz e da água. Não foi fácil — houve lágrimas, pedidos de desculpa e algumas acusações pelo meio — mas pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
A Mariana aceitou a ajuda mas deixou claro:
— Vou fazer isto à minha maneira. Preciso do vosso apoio, não dos vossos conselhos.
Os meses passaram e as coisas começaram lentamente a melhorar. O Rui arranjou um emprego melhor, a Mariana começou a vender bolos caseiros para ajudar nas despesas e os meus pais visitavam-nos todos os meses para dar uma mãozinha.
Mas as feridas ficaram. Ainda hoje há silêncios desconfortáveis nos jantares de família quando alguém fala em filhos ou escolhas de vida. Eu própria continuo a perguntar-me se fiz bem em seguir sempre o caminho “certo” ou se devia ter arriscado mais como a Mariana.
Às vezes olho para ela — cansada mas feliz com os filhos ao colo — e pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir aceitar verdadeiramente as escolhas uns dos outros? Ou estaremos sempre presos àquilo que achamos ser o melhor para quem amamos?
E vocês? Já sentiram esta distância dentro da vossa própria família? Como é que se aprende a aceitar sem julgar?