Quando Ser Avó Deixa de Ser um Presente e Passa a Ser uma Prisão

— Mãe, podes ficar com o Tomás amanhã? Tenho reunião até tarde e o Pedro está de turno — a voz da minha filha, Inês, soou apressada do outro lado do telefone, como se a resposta fosse óbvia.

Fiquei em silêncio por um segundo. Oiço o tic-tac do relógio da cozinha, o cheiro do café acabado de fazer ainda no ar. O Tomás tem seis anos, a Leonor quatro. São os meus netos, a luz dos meus olhos. Mas ultimamente, sinto-me mais como uma peça de mobiliário útil do que como alguém com vontade própria.

— Claro, filha — respondi, tentando esconder o cansaço na voz. — A que horas precisas que vá buscá-lo?

— Às três, como sempre. Obrigada, mãe! — desligou antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa.

Olhei para as minhas mãos, já marcadas pelo tempo. Quantas vezes já disse sim sem pensar em mim? Quantas vezes adiei os meus próprios planos para ser a avó perfeita? Sinto-me egoísta só de pensar nisso. Mas será mesmo egoísmo querer um pouco de paz?

O António, meu marido há quarenta anos, entrou na cozinha com o jornal debaixo do braço.

— Outra vez com os miúdos? — perguntou, sem levantar os olhos das notícias.

— Sim. A Inês precisa — respondi, tentando não soar amarga.

Ele encolheu os ombros e foi sentar-se à mesa. O silêncio entre nós tornou-se habitual. Já não falamos sobre sonhos ou viagens. Falamos sobre horários dos netos, consultas médicas e contas para pagar.

Lembro-me de quando a Inês era pequena. Eu trabalhava numa fábrica de têxteis em Guimarães, fazia turnos duplos para garantir que nada lhe faltava. O António também trabalhava muito, mas sempre arranjava tempo para brincar com ela ao domingo. Agora, parece que só existimos para servir os outros.

No dia seguinte, fui buscar o Tomás à escola. Ele correu para mim com aquele sorriso desdentado que me derrete o coração.

— Avó! Hoje fiz um desenho para ti! — gritou, mostrando uma folha cheia de rabiscos coloridos.

Abracei-o com força. Por momentos, esqueci-me do cansaço. Mas assim que chegámos a casa, começou a rotina: lanche, desenhos animados, ajudar nos trabalhos de casa, preparar o jantar. A Leonor chegou pouco depois com o Pedro, meu genro, que mal teve tempo para me cumprimentar antes de sair outra vez.

À noite, depois de os miúdos adormecerem no sofá, sentei-me na varanda com uma chávena de chá. O António estava a ver futebol na sala. Senti uma solidão profunda. Não era só a ausência de companhia; era a ausência de mim mesma.

Quando a Inês veio buscar os filhos já passava das dez da noite. Parecia exausta.

— Desculpa, mãe. Sei que é muito em cima da hora…

— Não faz mal — menti.

Ela olhou para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os meus.

— Mãe… tu sabes que és insubstituível, não sabes?

Sorri-lhe, mas por dentro senti um nó apertar-se no peito. Será que sou insubstituível ou apenas conveniente?

No fim-de-semana seguinte, combinei um almoço com a minha amiga Teresa no café da vila. Não via a Teresa há meses; ela sempre foi mais independente do que eu.

— Maria do Carmo, tu tens de aprender a dizer não — disse ela enquanto mexia o café.

— Não é assim tão simples…

— Claro que é! Eles já são adultos! Tu tens direito à tua vida!

Fiquei a pensar nas palavras dela durante dias. E se eu dissesse não? E se tirasse um dia só para mim?

Na segunda-feira seguinte, acordei decidida. Liguei à Inês antes dela me ligar a mim.

— Filha, amanhã não posso ficar com os miúdos. Preciso de ir ao médico e depois tenho umas coisas para tratar.

Do outro lado ouvi um suspiro impaciente.

— Mas mãe… quem é que vai ficar com eles? Não podes adiar?

— Não posso mesmo, Inês. Vais ter de arranjar outra solução.

O silêncio foi pesado.

— Pronto… eu dou um jeito — respondeu ela, fria.

Passei o dia ansiosa. Senti-me culpada e ao mesmo tempo aliviada. Fui ao mercado sozinha, comprei flores para mim mesma e sentei-me num banco do jardim a ler um livro. Senti-me livre pela primeira vez em anos.

Mas à noite, quando liguei à Inês para saber dos miúdos, percebi que algo tinha mudado.

— Está tudo bem? — perguntei.

— Está… mas foi complicado. O Pedro teve de sair mais cedo do trabalho e eu tive de pedir à vizinha para ficar com a Leonor uma hora. Não é fácil para nós também, mãe.

Senti-me pequena. Será que estou a ser egoísta? Ou será que finalmente estou a cuidar de mim?

Os dias seguintes foram estranhos. A Inês ligava menos vezes. O António continuava alheado no seu mundo silencioso. Eu sentia falta dos risos dos netos pela casa… mas também sentia uma paz nova.

Uma tarde, fui visitar a minha irmã Rosa em Braga. Ela sempre foi mais distante da família; nunca quis ter filhos nem netos.

— Sabes, Maria do Carmo — disse ela enquanto caminhávamos pelo parque — às vezes penso se não fiz bem em escolher outra vida. Nunca tive ninguém a depender de mim… mas também nunca tive ninguém a quem dar tudo.

Olhei para ela e percebi que cada escolha traz um preço. Eu escolhi dar tudo à minha família… mas agora sinto que me perdi pelo caminho.

No Natal desse ano, toda a família reuniu-se cá em casa. A Inês parecia mais distante; os miúdos estavam crescidos e já não precisavam tanto de mim como antes. O António continuava calado; só se animou quando o Benfica marcou um golo na televisão.

Depois do jantar, sentei-me sozinha na cozinha a arrumar as travessas.

A Inês entrou sem fazer barulho e ficou a olhar para mim.

— Mãe… desculpa se às vezes sou injusta contigo. Eu sei que te peço muito…

Olhei para ela com lágrimas nos olhos.

— Eu só queria sentir que ainda tenho uma vida minha…

Ela abraçou-me forte.

— Tens razão, mãe. Vou tentar pedir menos… e ouvir-te mais.

Naquela noite dormi melhor do que há muito tempo. Mas sei que amanhã tudo pode voltar ao mesmo: pedidos urgentes, silêncios pesados e aquela sensação de ser invisível dentro da minha própria casa.

Será que alguma vez vou conseguir encontrar o equilíbrio entre ser avó e ser simplesmente Maria do Carmo? Ou será este o destino de todas as mulheres da nossa geração: dar até não sobrar nada? E vocês… também sentem que às vezes a vossa vida já não vos pertence?