Quando Pedi à Minha Mãe Que Ficasse com os Meus Filhos: O Dia em Que a Família se Rompeu
— Mãe, por favor, só desta vez. O Tomás está doente e não tenho mesmo com quem o deixar. — A minha voz tremia, misturada entre o desespero e a vergonha de pedir mais uma vez.
Do outro lado da linha, o silêncio. Podia ouvir o tique-taque do relógio antigo na cozinha dela, aquele mesmo que me embalava nas noites de insónia quando era criança. Finalmente, a resposta chegou, fria como uma manhã de janeiro:
— Filha, já te disse que não posso. Tenho a minha vida. Não sou babysitter.
Senti um nó apertar-se-me na garganta. Olhei para o Tomás, deitado no sofá com febre, e para a Leonor, que brincava no tapete sem perceber a tempestade que se formava à sua volta. O meu marido, Rui, estava em Lisboa em trabalho. Eu tinha de ir trabalhar, não podia faltar outra vez. E a minha mãe… a minha mãe recusava-se a ajudar.
Desde que me lembro, a minha mãe sempre foi uma mulher dura. Cresceu no Alentejo, filha de agricultores, habituada ao trabalho árduo e à contenção das emoções. Quando o meu pai morreu — eu tinha apenas dez anos — ela fechou-se ainda mais no seu mundo de rotinas e silêncios. Eu tentava sempre agradar-lhe, mas nunca era suficiente.
Agora, adulta, com dois filhos pequenos e um emprego exigente numa loja de roupa no centro do Porto, sentia-me cada vez mais sozinha. Todos os meses gastava quase metade do ordenado em ATL para as crianças porque a minha mãe recusava-se a ficar com eles depois das aulas. Dizia sempre:
— Cada um faz as suas escolhas. Foste tu que quiseste filhos.
Mas desta vez era diferente. O Tomás estava doente. Eu precisava mesmo dela.
Desliguei o telefone sem dizer mais nada. Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto enquanto tentava pensar numa solução. Liguei para a minha sogra — também indisponível. Liguei para amigas — todas ocupadas ou longe. Senti-me encurralada.
Naquela noite, depois de adormecer as crianças, sentei-me à mesa da cozinha e escrevi-lhe uma mensagem longa, cheia de mágoa e frustração:
“Mãe, não percebo porque não queres ajudar-me. Sinto-me sozinha e cansada. Preciso de ti.”
A resposta só chegou no dia seguinte:
“Filha, cada um tem os seus problemas. Não posso carregar os teus também.”
O Rui chegou nessa noite e encontrou-me sentada no chão da casa de banho, a chorar baixinho para não acordar as crianças.
— Marta… — disse ele, ajoelhando-se ao meu lado — Não podes continuar assim. A tua mãe nunca foi de dar colo. Não vai mudar agora.
Mas eu não conseguia aceitar. Sempre imaginei que quando tivesse filhos ela seria aquela avó carinhosa que via nos outros lares: a fazer bolos com os netos, a buscar à escola, a dar colo nas noites de febre.
Os dias passaram e o ressentimento cresceu dentro de mim como uma erva daninha. Comecei a evitar ligar-lhe. Quando ela telefonava para saber das crianças — raramente — respondia com frases curtas e frias.
Um domingo à tarde, decidi levar as crianças até à casa dela em Matosinhos. Queria confrontá-la cara a cara.
— Avó! — gritou a Leonor ao entrar porta dentro.
A minha mãe estava sentada na sala, a ver televisão. Olhou para nós como se fôssemos visitas inesperadas.
— Vieram sem avisar?
— Mãe, precisamos de falar — disse eu, tentando controlar a voz.
Ela suspirou e desligou a televisão.
— O que foi agora?
— Porque é que não queres ajudar-me? Porque é que rejeitas os teus netos? Eles sentem falta de ti… Eu sinto falta de ti!
Ela olhou para mim durante longos segundos. Depois levantou-se e foi buscar um copo de água à cozinha. Quando voltou, respondeu:
— Marta, eu já fiz o meu papel nesta vida. Criei-te sozinha, trabalhei até não poder mais. Agora quero paz. Não tenho paciência para crianças pequenas.
— Mas são os teus netos! — gritei, incapaz de conter as lágrimas.
Ela encolheu os ombros.
— Não pedi para ser avó. Isso foste tu que decidiste.
A Leonor olhava para nós assustada. O Tomás escondia-se atrás das minhas pernas.
Saí dali com o coração despedaçado. No carro, as crianças perguntaram porque é que a avó estava triste comigo. Não soube responder.
As semanas seguintes foram um tormento. Senti-me dividida entre o amor pelos meus filhos e a raiva pela minha mãe. O Rui tentava ajudar, mas também ele estava cansado da situação.
No Natal desse ano, decidi não ir à casa da minha mãe pela primeira vez na vida. Passei a noite em casa com o Rui e as crianças. Faltou qualquer coisa naquela noite: faltou família.
No dia seguinte recebi uma mensagem dela:
“Feliz Natal para ti e para os meninos.”
Respondi apenas: “Igualmente.”
O tempo foi passando e o afastamento tornou-se rotina. As crianças cresceram sem aquela ligação à avó que eu tanto desejei para elas — e para mim também.
Um dia, ao buscar a Leonor à escola, vi-a parada ao portão com um desenho na mão.
— Mãe, fiz este desenho para a avó. Achas que ela vai gostar?
Olhei para o papel: era um coração grande com três figuras dentro — ela, o Tomás e eu.
Engoli em seco e sorri-lhe:
— Acho que sim, filha… Acho que sim.
Mas sabia que provavelmente aquele desenho ia ficar esquecido numa gaveta qualquer.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fui injusta com a minha mãe? Ou será ela incapaz de dar aquilo que nunca recebeu? Até onde vai o amor de uma mãe? E vocês… já sentiram este vazio dentro da vossa própria família?