Quando os Sonhos se Calam: A Voz que Guardei para Mim

— Mãe, não podes continuar a viver no passado! — gritou a minha filha, Joana, batendo com força a porta da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o silêncio pesado que ficou no ar. Eu fiquei ali, com as mãos trémulas sobre a mesa, olhando para a chávena como se nela pudesse encontrar respostas para perguntas que nunca tive coragem de fazer.

Desde pequena, cantar era tudo para mim. Cresci num bairro cinzento de Lisboa, num prédio onde as paredes eram tão finas que se ouvia o vizinho a tossir durante a noite. A minha mãe, Dona Amélia, dizia sempre: “Menina, põe-te direita! As cantoras acabam sozinhas e tristes.” Mas eu não queria saber. Quando ficava sozinha em casa, subia para cima de uma cadeira em frente ao espelho do corredor, agarrava na escova do cabelo como se fosse um microfone e deixava-me levar. Imaginava aplausos, luzes, o meu nome em cartazes.

O meu pai, Manuel, era serralheiro e chegava tarde. Trazia sempre o cheiro do ferro e da cerveja barata. Às vezes ouvia-me cantar e sorria de lado, mas nunca disse nada. Talvez tivesse medo de me dar esperanças. Talvez soubesse que os sonhos são perigosos quando se tem pouco.

Aos 16 anos, inscrevi-me às escondidas num concurso de talentos da escola. Cantei “Canção do Mar”, da Dulce Pontes. Lembro-me das mãos suadas, do coração a bater tão forte que pensei que ia desmaiar. No final, os colegas aplaudiram de pé. Senti-me viva como nunca. Mas quando cheguei a casa com o diploma na mão, a minha mãe rasgou-o sem olhar para mim.

— Achas que vais ser alguém a cantar? — perguntou ela, os olhos duros como pedra. — Aqui não há lugar para fantasias.

Chorei nessa noite até adormecer. No dia seguinte, fui trabalhar para a mercearia do senhor António. A vida foi passando: conheci o Luís, casei cedo demais, tive a Joana antes de saber quem era realmente. O canto ficou guardado numa gaveta fechada à chave.

O Luís era bom homem, mas prático demais. Quando me ouvia cantarolar enquanto lavava a loiça, dizia sempre:

— Isso não paga contas, Maria.

E eu calava-me. Fui calando-me durante anos. A Joana cresceu sem saber que a mãe dela já sonhara com palcos e multidões. Cresceu a ouvir discussões sobre dinheiro, sobre contas por pagar, sobre o futuro incerto.

Quando o Luís morreu — um acidente estúpido na estrada para Setúbal — senti um vazio imenso. Mas também uma pequena faísca de liberdade. Comecei a cantar baixinho outra vez, quando estava sozinha em casa. Às vezes até me atrevia a gravar pequenos vídeos no telemóvel antigo, mas nunca tive coragem de mostrar a ninguém.

A Joana tornou-se mulher feita, independente e determinada. Casou com o Pedro e teve uma filha linda: a Leonor. A minha neta é o sol da minha vida agora. Tem seis anos e olhos curiosos que parecem ver tudo.

Hoje de manhã, enquanto lhe penteava o cabelo para ir para a escola, ela perguntou:

— Avó, porque é que tu cantas tão baixinho?

Fiquei sem resposta. Como explicar-lhe que há sonhos que se enterram tão fundo que quase nos esquecemos deles?

Foi então que Joana entrou na cozinha e ouviu a pergunta da filha. Olhou para mim com aquele ar cansado de quem carrega o peso do mundo nos ombros.

— Mãe, não podes continuar a viver no passado! — repetiu ela, desta vez mais baixo, mas com igual dureza.

Senti uma raiva antiga crescer dentro de mim. Porque é que ninguém entende? Porque é que todos acham que sonhar é um luxo?

— Não estou a viver no passado — respondi, tentando controlar a voz. — Só gostava que soubesses quem eu fui antes de ser só mãe e avó.

Joana suspirou e saiu sem dizer mais nada.

Fiquei sozinha com Leonor. Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes.

— Avó, canta para mim?

E ali, naquele momento simples, senti tudo outra vez: o medo, a esperança, o desejo de ser ouvida. Cantei baixinho uma canção antiga que a minha avó me ensinou quando eu era pequena. Leonor sorriu e abraçou-me com força.

À noite, sentei-me na varanda com um caderno velho e comecei a escrever tudo isto. As palavras saíam como lágrimas presas há anos: as renúncias, as mágoas, os pequenos momentos de felicidade roubada.

Pergunto-me agora: será tarde demais para voltar a sonhar? Será que algum dia terei coragem de mostrar à Leonor — e à Joana — quem fui realmente? Ou será que os sonhos das mulheres da minha família estão condenados ao silêncio?

E vocês? Também guardam sonhos antigos fechados numa gaveta? O que vos impede de os partilhar?