Quando os Pais se Tornam Ausentes: O Peso das Decisões de Gabriel
— Vais mesmo fazer isto, Gabriel? Vais casar-te sem os teus pais ao teu lado?
A minha voz tremia, mas mantive-me firme diante dele, sentada na beira da cama do nosso pequeno apartamento em Lisboa. Era véspera do nosso casamento e a tensão entre nós era quase palpável, como se o ar estivesse carregado de eletricidade. Gabriel olhou-me com aqueles olhos castanhos escuros, duros como pedra.
— Já te disse, Inês. Não quero saber deles. Não depois de tudo o que fizeram.
O silêncio caiu pesado. Eu sabia o que ele queria dizer, mas não conseguia aceitar. Desde que começámos a namorar, percebi que a relação de Gabriel com os pais era um campo minado. A mãe, Dona Teresa, sempre foi rígida, controladora, e o pai, Senhor António, um homem de poucas palavras e muitos silêncios. Quando Gabriel decidiu seguir arquitetura em vez de medicina — o sonho imposto pela família — a guerra começou.
Lembro-me da primeira vez que fui jantar a casa deles. O ambiente era frio, as conversas cheias de indiretas. Dona Teresa olhava para mim como se eu fosse uma ameaça ao futuro brilhante que imaginava para o filho. No final daquela noite, Gabriel saiu porta fora aos gritos:
— Nunca vou ser aquilo que querem! Deixem-me em paz!
Desde então, os encontros tornaram-se raros e tensos. Quando anunciámos o noivado, nem sequer houve felicitações. Apenas silêncio e olhares de reprovação.
Naquela noite antes do casamento, tentei mais uma vez:
— Gabriel, são teus pais. Um dia vais arrepender-te. Quando eles já cá não estiverem…
Ele virou-se para a janela, evitando o meu olhar.
— Não quero falar sobre isso.
No dia seguinte, vesti o meu vestido branco com as mãos a tremer. A igreja estava cheia de amigos e familiares meus, mas do lado de Gabriel só estavam dois primos afastados. Senti um vazio estranho quando olhei para os bancos reservados aos pais dele — vazios, frios. Durante a cerimónia, reparei que Gabriel evitava olhar para aquele lado.
A festa foi bonita, mas havia sempre um silêncio pairando entre nós. Os meus pais tentaram animá-lo:
— Então, Gabriel, os teus pais não puderam mesmo vir?
Ele apenas sorriu de lado e mudou de assunto.
Os anos passaram e a ferida nunca sarou. Tínhamos discussões recorrentes sobre família. Quando nasceu a nossa filha Matilde, tentei convencê-lo a ligar aos pais:
— Eles merecem conhecer a neta.
Gabriel explodiu:
— Merecem? Merecem o quê? Nunca quiseram saber de mim! Agora vão querer saber da minha filha?
Eu sentia-me dividida entre o amor por ele e a dor de ver aquela família desfeita. Matilde cresceu sem avós paternos. Às vezes perguntava:
— Mamã, porque é que só tenho avós do teu lado?
Eu inventava desculpas:
— Os outros avós vivem longe…
Mas sabia que era mentira. E cada vez que via Matilde brincar sozinha no parque enquanto os outros meninos corriam para os braços dos avós, sentia uma pontada no peito.
Um dia, recebi uma chamada inesperada. Era o primo de Gabriel:
— Inês… O tio António está muito doente. Não lhe resta muito tempo.
Fiquei gelada. Esperei que Gabriel chegasse do trabalho e contei-lhe tudo. Ele ficou em silêncio durante minutos intermináveis.
— Vais vê-lo? — perguntei baixinho.
Gabriel abanou a cabeça.
— Não consigo. Não depois de tudo.
Discutimos nessa noite como nunca antes. Gritei-lhe:
— Vais arrepender-te! Vais carregar este peso para sempre!
Ele saiu de casa e só voltou de madrugada. Não falou mais no assunto.
Duas semanas depois, o pai dele morreu. Fomos ao funeral — eu insisti para irmos — mas Gabriel ficou à porta da igreja, incapaz de entrar. Vi Dona Teresa sentada sozinha na primeira fila, os olhos vermelhos de tanto chorar. Senti pena dela e raiva dele ao mesmo tempo.
No regresso a casa, o silêncio era ensurdecedor. Matilde dormia no banco de trás e eu olhava pela janela, tentando conter as lágrimas.
Os meses seguintes foram ainda mais difíceis. Gabriel fechou-se sobre si mesmo. Passava horas calado, perdido nos seus pensamentos. Uma noite acordei e encontrei-o sentado na sala às escuras, com uma garrafa de vinho quase vazia ao lado.
— Não consigo dormir — murmurou ele.
Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão.
— Tens de perdoar, Gabriel. Nem que seja por ti próprio.
Ele chorou como nunca o tinha visto chorar antes.
Com o tempo, tentou reaproximar-se da mãe. Foi um processo lento e doloroso. Dona Teresa estava diferente — mais frágil, mais velha, menos arrogante. Quando finalmente aceitou vir jantar connosco, Matilde olhou para ela com curiosidade e medo ao mesmo tempo.
Durante o jantar, houve silêncios constrangedores e conversas sobre trivialidades: o tempo, as notícias, as novelas da televisão portuguesa. Mas no final da noite, Dona Teresa pegou na mão do filho e disse:
— Desculpa se falhei contigo.
Gabriel chorou outra vez.
A relação nunca voltou a ser perfeita — talvez nunca tenha sido — mas pelo menos havia diálogo. Matilde começou a chamar-lhe “avó Teresa” e eu sentia um alívio imenso por ver alguma reconciliação.
Mas nada apagava o arrependimento pelo tempo perdido. O pai de Gabriel nunca conheceu a neta nem viu o filho casar-se ou ser feliz na sua escolha profissional.
Agora escrevo esta história para quem me lê: será que vale a pena carregar mágoas até ao fim? Será que não devíamos tentar perdoar antes que seja tarde demais?
Às vezes pergunto-me: se tivesse insistido mais… se tivesse feito diferente… será que hoje seríamos todos mais felizes? E vocês? Já perdoaram alguém antes que fosse tarde demais?