Quando os Meus Filhos Deixaram de Me Ver: Entre o Silêncio e a Saudade
— Não aguento mais, Miguel! — gritei, a voz embargada entre a raiva e as lágrimas. — Se não me ajudam, vendo tudo e vou para um lar!
O silêncio caiu pesado na sala, apenas interrompido pelo tique-taque do velho relógio de parede. O Miguel olhou para mim como se eu fosse uma estranha. A Inês, sentada ao lado dele, desviou o olhar para o telemóvel, fingindo não ouvir. Senti-me pequena, quase invisível, como se tivesse desaparecido da vida deles há muito tempo.
Nunca imaginei que chegaria a este ponto. Passei anos a fio a cuidar deles, a sacrificar sonhos e vontades para lhes dar tudo o que podia. O António, meu marido, partiu cedo demais — um enfarte fulminante numa manhã fria de janeiro. Desde então, fui mãe e pai, escudo e abrigo. E agora, aos 68 anos, era como se tivesse deixado de existir.
— Mãe, não digas disparates — disse finalmente o Miguel, sem me olhar nos olhos. — Sabes bem que não tens de ir para lado nenhum.
— Então ajudem-me! — supliquei. — A casa está a cair aos bocados, preciso de companhia… Nem sequer vêm cá jantar ao domingo!
A Inês suspirou, impaciente:
— Mãe, temos as nossas vidas. O Tiago tem futebol ao sábado, a Leonor tem explicações… Não é fácil.
— E eu? Eu não sou fácil? — perguntei, sentindo o nó na garganta apertar ainda mais.
Eles levantaram-se pouco depois, com desculpas apressadas. Fiquei sozinha na sala, rodeada pelas fotografias antigas: os sorrisos deles em crianças, os natais felizes, as férias em Vila Nova de Milfontes. Tudo parecia tão distante agora.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito por eles. Lembrei-me das noites em claro quando estavam doentes, das festas de aniversário improvisadas com pouco dinheiro mas muito amor. Lembrei-me do orgulho que senti quando entraram na universidade — fui eu que paguei as propinas com horas extra no supermercado.
No dia seguinte, fui à Junta de Freguesia perguntar sobre lares. A senhora do balcão olhou-me com pena:
— Tem mesmo a certeza? Os seus filhos não podem ajudar?
Senti vergonha. Disse-lhe que sim, que estavam muito ocupados. Ela deu-me uma lista de lares na zona de Setúbal e um folheto sobre apoio domiciliário. Saí dali com os papéis na mão e um vazio no peito.
Durante semanas, tentei falar com eles. Liguei várias vezes; deixei mensagens que ficaram sem resposta. No grupo de WhatsApp da família, só partilhavam vídeos engraçados ou notícias sem importância. Ninguém perguntava como eu estava.
Um domingo à tarde, decidi fazer-lhes uma surpresa: preparei o bacalhau à Brás preferido do Miguel e o arroz doce da Inês. Esperei horas. Ninguém apareceu. O bacalhau arrefeceu na travessa; o arroz doce ficou esquecido no frigorífico.
Chorei sozinha na cozinha até não ter mais lágrimas.
No dia seguinte, recebi uma chamada da Leonor, minha neta:
— Avó, porque é que disseste à mãe que vais para um lar? Vais mesmo?
A voz dela tremia. Senti-me culpada por lhe causar preocupação.
— Não sei, querida… Sinto-me tão sozinha.
Ela ficou em silêncio e depois disse baixinho:
— Eu gosto muito de ti, avó.
Foi a primeira vez em meses que ouvi aquelas palavras.
Os dias passaram lentos e iguais. Comecei a sair mais de casa: ia ao café da Dona Rosa jogar às cartas com outras senhoras da minha idade; às vezes ia ao mercado só para ouvir vozes e sentir o cheiro das frutas frescas. Mas nada preenchia o vazio que os meus filhos deixaram.
Uma tarde chuvosa, ouvi bater à porta. Era o Miguel.
— Mãe… podemos falar?
Entrou sem esperar resposta. Sentou-se à minha frente e ficou a olhar para as mãos.
— Desculpa — disse finalmente. — Sei que temos falhado contigo.
Senti vontade de gritar-lhe tudo o que me magoava, mas limitei-me a perguntar:
— Porquê? Porque é que deixaram de vir cá? Porque é que me tratam como se fosse um peso?
Ele suspirou:
— Não é isso… É só… A vida é tão complicada agora. O trabalho consome-me, a Inês está sempre cansada… Às vezes esquecemo-nos do que é importante.
— Eu sou importante? — perguntei baixinho.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses.
— És tudo para nós, mãe. Só não sabemos como mostrar isso.
Ficámos ali sentados em silêncio durante muito tempo. Senti uma mistura de alívio e tristeza. Queria acreditar nele, mas as feridas eram profundas.
Nos dias seguintes começaram a ligar mais vezes; passaram a vir jantar ao domingo outra vez. Mas nada voltou a ser como antes. Senti que algo se tinha partido dentro de mim — uma confiança antiga, uma certeza de pertença.
Às vezes olho para eles e pergunto-me se algum dia me voltaram realmente a ver como antes: como mãe, como mulher cheia de histórias e sonhos próprios — não apenas como alguém que precisa de cuidados ou dá trabalho.
Agora passo os dias entre memórias e pequenas alegrias: um café quente ao sol da varanda; uma conversa breve com a vizinha; o cheiro do pão acabado de cozer na padaria da esquina. Aprendi a viver com menos expectativas e mais silêncio.
Mas à noite, quando fecho os olhos, pergunto-me: será isto envelhecer em Portugal? Será que todos os pais acabam por ser esquecidos pelos filhos? Ou fui eu que errei algures no caminho?
E vocês? Já sentiram esta solidão dentro da própria família? O que significa ser mãe ou pai nos dias de hoje?