Quando os Convidados Não Querem Ir Embora: Uma Páscoa Que Mudou a Minha Família

— Beatriz, abre a porta! Eles já chegaram! — ouvi a voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoar pelo corredor antes mesmo de conseguir pousar o tabuleiro de bacalhau.

O meu coração disparou. Não era suposto termos convidados para a Páscoa este ano. Eu tinha planeado um almoço tranquilo, só com o meu marido Rui, o nosso filho Tomás e, claro, Dona Lurdes, que já fazia parte do mobiliário da casa desde que o sogro morreu. Mas quando abri a porta, deparei-me com uma multidão: os primos de Vila Real, a tia Augusta com as suas malas enormes, o tio Manuel a arrastar uma caixa de vinhos e até a pequena Joana, que nunca largava o tablet.

— Surpresa! — gritou Augusta, abraçando-me com força. — Viemos passar a Páscoa convosco! Que alegria!

Alegria? Senti um nó no estômago. Olhei para Rui, que encolheu os ombros, impotente. Dona Lurdes sorria como se tivesse ganho o Euromilhões.

— Beatriz, querida, não te importas pois não? Família é família! — disse ela, já a distribuir beijos e a indicar quartos.

A casa encheu-se de vozes, risos e malas espalhadas por todo o lado. O cheiro do bacalhau misturava-se com perfumes fortes e o som da televisão competia com discussões sobre futebol. O Tomás desapareceu para o quarto, assustado com tanta confusão.

Naquela noite, mal consegui dormir. O colchão improvisado no chão do escritório rangia cada vez que Rui se mexia. Do outro lado da parede, ouviam-se gargalhadas e copos a tilintar.

— Isto vai correr mal — murmurei para Rui.

Ele suspirou:

— É só até segunda-feira. Aguenta mais um bocadinho.

Mas segunda-feira parecia um sonho distante. No domingo de manhã, Augusta já estava na cozinha a criticar o meu folar:

— Na minha terra faz-se com mais canela. E este está seco…

O tio Manuel reclamava do café:

— Isto é água suja! Não tens café à séria?

A pequena Joana gritava porque queria ver desenhos animados na televisão da sala, enquanto Dona Lurdes insistia em pôr música popular portuguesa no volume máximo.

Senti-me uma estranha na minha própria casa. Cada canto estava ocupado: Augusta estendia roupa na varanda sem pedir licença; Manuel usava o meu computador para ver apostas desportivas; Joana espalhava brinquedos pela sala inteira. Até o Tomás começou a perguntar quando é que “os estranhos” iam embora.

Na segunda-feira, ninguém deu sinais de arrumar as malas. Pelo contrário: Augusta sugeriu um jantar especial para “celebrar a família reunida”.

— Beatriz, faz aquele arroz de pato que tu sabes! — pediu ela, como se eu fosse empregada.

Olhei para Rui em busca de apoio. Ele desviou o olhar.

À noite, depois de todos se deitarem, fui à varanda respirar fundo. As lágrimas caíram sem eu conseguir controlar. Senti-me invadida, desrespeitada e sozinha. O meu lar já não era meu.

No dia seguinte, tentei conversar com Dona Lurdes:

— Mãe, isto não pode continuar assim. Preciso do meu espaço. O Tomás está nervoso, eu estou exausta…

Ela olhou-me com frieza:

— A família é para isso mesmo: apoiar-se nos momentos difíceis. Eles não têm para onde ir agora. Tens de ser compreensiva.

Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. E Rui? Limitava-se a fugir para o trabalho e deixava-me sozinha com o caos.

As discussões começaram a aumentar. Uma noite, Augusta acusou-me de ser fria e ingrata:

— Tu nunca gostaste de nós! Só pensas em ti!

Respondi-lhe entre dentes:

— Gosto muito de vocês… mas gosto mais da minha paz.

O ambiente ficou insuportável. O Tomás começou a ter pesadelos. Eu perdi peso e deixei de dormir. Até Rui começou a perceber que algo tinha de mudar.

Finalmente, numa manhã chuvosa de quinta-feira, Rui explodiu:

— Basta! Vocês têm de ir embora! A Beatriz não aguenta mais!

Augusta chorou, Dona Lurdes fez-se de vítima e Manuel saiu batendo portas. Mas finalmente começaram a arrumar as coisas.

Quando fecharam a porta atrás deles, sentei-me no chão da cozinha e chorei como nunca antes. Rui abraçou-me em silêncio.

Durante semanas, o ambiente ficou pesado entre mim e Dona Lurdes. Ela mal me falava. O Tomás demorou a voltar ao normal. E eu? Fiquei com uma pergunta na cabeça: até onde devemos ir por “família”? Será que vale tudo em nome dos laços de sangue?

Às vezes penso: será que fui egoísta? Ou será que finalmente aprendi a defender o meu espaço? E vocês… até onde iriam por causa da vossa família?