Quando o telefone toca às 17h: Entre ser mãe e ser nora, onde me perdi?
— Olá, Mariana? — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoou fria do outro lado da linha. Eu olhei para o relógio: 17h em ponto. Era sempre assim, como se ela tivesse um alarme interno para me lembrar que, para ela, eu nunca estava à altura.
— Sim, Dona Lurdes, diga… — tentei soar calma, mas o nó no estômago já se formava. O cheiro do arroz quase queimado invadiu a cozinha; distraí-me por um segundo e já estava a correr para desligar o lume. O meu filho, Tomás, gritava da sala: “Mãe, o Pedro não me larga!”
— Mariana, já viste as notas do Pedro? Não achas que ele devia ter explicações? E aquele casaco que ele usava ontem… parecia tão velho. — A cada frase dela, sentia-me mais pequena. O Pedro é o meu filho mais velho, tem 10 anos e é sensível demais para o mundo duro da escola — e da avó.
— Eu estou a acompanhar tudo, Dona Lurdes. O Pedro está bem — respondi, tentando não mostrar a voz trémula. Mas ela não se calava.
— Bem? Mariana, tu sabes que na nossa família sempre fomos exigentes. O meu António nunca tirou menos de 18 a matemática! — E lá vinha ela com as comparações. António, o meu marido, era o filho perfeito. E eu? Eu era só a nora que nunca chegava lá.
Desliguei o telefone com um suspiro pesado. Senti as lágrimas a quererem cair, mas não podia chorar ali. O Tomás precisava de mim. Fui até à sala, sentei-me no chão entre os brinquedos espalhados e abracei-o. Ele olhou para mim com aqueles olhos castanhos enormes:
— Mãe, estás triste?
— Não, amor. Só cansada.
Mas eu estava mais do que cansada. Estava exausta de tentar ser tudo para todos: boa mãe, boa esposa, boa nora. E sentia que falhava em todas as frentes.
O António chegou tarde nesse dia. Quando entrou em casa, largou a pasta no sofá e foi direto ao frigorífico.
— A minha mãe ligou-me — disse ele, sem olhar para mim. — Disse que o Pedro anda desleixado na escola.
— Ela ligou-me também — respondi seca.
Ele suspirou e sentou-se à mesa.
— Mariana, ela só quer ajudar.
— Ajudar? António, ela só sabe criticar! Nunca nada está bem! Nem comigo, nem com os miúdos…
Ele ficou em silêncio. O silêncio dele era pior do que qualquer discussão. Era como se dissesse: “Aguenta-te.” E eu aguentava. Sempre aguentei.
Naquela noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me sozinha na varanda. Olhei para as luzes da cidade e pensei em como tudo tinha mudado desde que casei com o António. Antes dele, eu era Mariana: independente, cheia de sonhos e certezas. Agora era “a mãe do Pedro e do Tomás”, “a mulher do António”, “a nora da Dona Lurdes”.
Lembrei-me do dia do nosso casamento. Dona Lurdes nunca gostou de mim. Disse ao António que eu era “boa rapariga”, mas não era “do nosso meio”. Eu vinha de uma família simples de Setúbal; eles eram de Lisboa, classe média alta. No início tentei agradar-lhe: fazia bolos para os almoços de domingo, vestia-me como ela queria, ouvia as histórias dela sobre como tudo era melhor “no tempo dela”.
Mas nada chegava.
Quando engravidei do Pedro, ela disse logo:
— Espero que saibas educar uma criança como deve ser.
E quando nasceu o Tomás:
— Dois rapazes? Vais ver como é difícil…
Cada conquista dos meus filhos era dela; cada falha era minha culpa.
No trabalho também não era fácil. Sou assistente administrativa numa escola pública; ganho pouco e trabalho muito. Às vezes chego a casa tão cansada que só queria deitar-me no sofá e fechar os olhos. Mas não posso: há banhos para dar, trabalhos de casa para ajudar, jantares para fazer.
E depois há as reuniões de família. Os jantares de domingo na casa dos meus sogros são um campo minado de críticas veladas:
— O Pedro está tão magrinho…
— O Tomás devia comer mais legumes…
— Mariana, já pensaste em voltar a estudar? Hoje em dia é tão importante ter um curso superior…
O António nunca me defende. Fica calado ou muda de assunto. Às vezes penso se ele sente vergonha de mim.
Uma noite dessas, depois de mais um jantar tenso, rebentei:
— António, porque é que nunca dizes nada? Porque é que deixas a tua mãe falar assim comigo?
Ele olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta:
— Mariana, tu levas tudo muito a peito. Ela só quer o melhor para nós.
Chorei sozinha no quarto enquanto ele via televisão na sala.
Comecei a duvidar de mim mesma: serei mesmo uma má mãe? Uma má nora? Uma má mulher?
Os dias passaram e fui-me fechando cada vez mais. Os miúdos notavam; estavam mais irrequietos, discutiam por tudo e por nada. Um dia o Pedro chegou da escola e disse:
— Mãe, a avó disse que tu não sabes ajudar-me nos trabalhos de casa porque não foste à universidade…
Senti uma raiva tão grande que tive vontade de gritar. Mas abracei-o e disse:
— A avó às vezes diz coisas sem pensar. Eu estou aqui para ti, sempre.
Mas será que estava mesmo? Ou estava tão ocupada a tentar agradar a todos que me esquecia dos meus próprios filhos?
Nessa noite tomei uma decisão: precisava de me reencontrar. Marquei uma consulta com uma psicóloga do centro de saúde. Fui sozinha; não contei ao António nem à minha mãe.
Na primeira sessão chorei tudo o que tinha guardado durante anos.
— Sinto que perdi quem sou — disse-lhe entre soluços.
A doutora Ana sorriu-me com ternura:
— Mariana, cuidar dos outros é importante. Mas cuidar de si mesma também é um ato de amor pelos seus filhos.
Saí dali mais leve. Comecei a escrever num caderno tudo o que sentia: as mágoas com a Dona Lurdes, as dúvidas sobre mim mesma, os sonhos antigos que deixei para trás.
Um dia escrevi: “Quero voltar a estudar.”
Falei disso ao António numa noite calma:
— Pensei em tirar um curso à noite… talvez gestão ou educação infantil.
Ele olhou-me surpreendido:
— Achas que consegues conciliar tudo?
Senti vontade de desistir ali mesmo. Mas respirei fundo:
— Quero tentar por mim. Preciso disto.
Ele encolheu os ombros:
— Faz como quiseres.
Não era apoio; mas também não era proibição.
Inscrevi-me num curso pós-laboral numa escola perto de casa. Os primeiros dias foram difíceis; sentia-me velha entre os colegas mais novos. Mas aos poucos fui ganhando confiança.
A Dona Lurdes soube pela boca do António:
— Então agora vais estudar? E os teus filhos? — perguntou ela num domingo à tarde.
Olhei-a nos olhos pela primeira vez sem medo:
— Os meus filhos vão ficar bem porque têm uma mãe feliz.
Ela ficou calada; talvez pela primeira vez percebeu que não podia controlar tudo.
Os meses passaram e fui mudando por dentro. O Pedro melhorou na escola porque eu estava mais presente — não fisicamente, mas emocionalmente. O Tomás deixou de fazer birras porque sentia-me menos tensa.
O António continuava distante; talvez nunca fosse o marido atento dos meus sonhos. Mas aprendi a não depender tanto da aprovação dele ou da mãe dele.
Hoje olho-me ao espelho e vejo outra mulher: cansada sim, mas mais forte e dona de si mesma.
Às vezes ainda me pergunto: será possível ser uma boa mãe sem ser a nora perfeita? Ou será que passamos a vida inteira a tentar agradar aos outros e esquecemo-nos de nós?
E vocês? Já sentiram que precisavam perder-se para se reencontrarem?