Quando o Sucesso se Torna um Abismo: O Dilema de Laura e Ricardo

— Laura, não achas que já chega? — A voz do Ricardo ecoou pela cozinha, carregada de uma raiva contida que me gelou o sangue. Eu estava de costas, a mexer o arroz para o jantar, mas as mãos começaram a tremer. Sabia exatamente ao que ele se referia, mas não queria ser eu a puxar o fio da meada.

— Chega do quê, Ricardo? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo sabendo que era inútil. O silêncio dele foi mais pesado do que qualquer resposta. Senti-o aproximar-se, o cheiro do seu aftershave misturado com o aroma do jantar.

— Do teu trabalho. Das tuas viagens. Das tuas reuniões até tarde. Da tua ausência — disse ele, cada palavra como uma pedra atirada ao lago calmo da nossa rotina.

Fechei os olhos por um segundo. Era sempre assim: eu a tentar equilibrar tudo, ele a sentir-se cada vez mais pequeno. Nunca pensei que o sucesso pudesse ser uma maldição.

Quando comecei a trabalhar na consultora em Lisboa, há seis anos, éramos só nós dois e um apartamento pequeno em Benfica. O Ricardo era professor de História numa escola secundária, apaixonado pelo que fazia, e eu estava ainda a tentar provar o meu valor. Lembro-me de como ele me apoiava nas entrevistas, de como me fazia chá quando eu chegava tarde a casa. Mas as coisas mudaram depressa.

A primeira promoção veio com um aumento de salário e viagens constantes ao Porto e a Madrid. O Ricardo começou a fazer piadas sobre ser “o marido da Laura”, mas eu ria-me e achava graça. Só mais tarde percebi que essas piadas eram pequenas facas afiadas.

— Não percebes que já nem te conheço? — gritou ele naquela noite, batendo com força na bancada. — Chego a casa e tu não estás. Quando estás, estás exausta ou agarrada ao telemóvel.

— Estou a trabalhar para nós! — respondi, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Para termos uma vida melhor, para podermos viajar, para podermos sonhar!

Ele riu-se, amargo.

— Sonhar? Os teus sonhos não são os meus sonhos, Laura.

A frase ficou a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar nos pequenos detalhes: o Ricardo já não me esperava acordado, já não me perguntava como tinha corrido o dia. Às vezes nem jantávamos juntos; ele dizia que tinha trabalho para corrigir testes ou ia correr sozinho pelo bairro.

A minha mãe ligava-me todos os domingos.

— Filha, tens de cuidar do teu casamento — dizia ela com aquela voz doce mas firme das mães portuguesas. — O trabalho é importante, mas não é tudo.

Eu encolhia os ombros, cansada de ouvir sempre o mesmo discurso. Mas depois via as amigas da faculdade casadas com homens “bem-sucedidos”, elas em casa ou em empregos menos exigentes, e sentia-me deslocada. Por que é que eu tinha de escolher?

O ponto de rutura chegou numa sexta-feira à noite. Tinha acabado de receber uma proposta para liderar um projeto internacional em Bruxelas durante seis meses. Era o sonho de qualquer consultora da minha idade. Cheguei a casa radiante, pronta para partilhar a novidade.

— Ricardo! Tenho uma coisa incrível para te contar! — exclamei ao entrar na sala.

Ele estava sentado no sofá, olhos fixos na televisão desligada.

— Vais aceitar, não vais? — perguntou sem emoção.

— É uma oportunidade única…

Ele levantou-se devagar e olhou-me nos olhos como nunca antes.

— Então escolhe: ou vais para Bruxelas ou ficas comigo. Não consigo mais viver nesta sombra.

O chão fugiu-me dos pés. Senti-me traída por alguém que sempre achei que estaria ao meu lado, acontecesse o que acontecesse.

— Não podes pedir-me isso… — sussurrei, quase sem voz.

Ele abanou a cabeça.

— Não posso continuar a ser apenas o teu apoio de bastidores. Preciso de ser protagonista na minha própria vida.

Passei aquela noite em claro, sentada à janela do nosso quarto, a ver as luzes da cidade e a pensar em tudo o que tínhamos construído juntos: as férias em Tavira, os jantares improvisados à sexta-feira, as discussões sobre política à mesa da cozinha. Mas também pensei em tudo o que tinha sacrificado: os aniversários perdidos, os fins-de-semana adiados por causa de reuniões urgentes, os sonhos adiados porque “agora não dá”.

No dia seguinte fui ter com a minha irmã Mariana ao café da esquina.

— Ele deu-te um ultimato? — perguntou ela, incrédula.

Assenti com lágrimas nos olhos.

— E tu? O que vais fazer?

Não sabia responder. Sentia-me dividida entre dois mundos: o da mulher independente e ambiciosa e o da esposa dedicada que todos esperavam que eu fosse.

Durante semanas tentei encontrar uma solução intermédia: sugeri trabalhar remotamente parte do tempo, propus viagens mais curtas… Mas nada parecia suficiente para o Ricardo. Ele estava magoado demais para aceitar concessões.

As discussões tornaram-se diárias. Às vezes gritávamos tanto que os vizinhos batiam na parede. Outras vezes era só silêncio — aquele silêncio pesado que enche uma casa inteira e nos faz sentir sozinhos mesmo acompanhados.

Uma noite cheguei tarde e encontrei as malas dele à porta do quarto.

— Vou ficar uns tempos em casa da minha mãe — disse ele sem me olhar nos olhos.

Senti um vazio tão grande dentro de mim que quase não conseguia respirar. Liguei à minha mãe em lágrimas e ela veio ter comigo imediatamente.

— Filha… às vezes amar também é deixar ir — disse ela enquanto me abraçava no sofá.

Os dias seguintes foram um borrão de trabalho e saudade. Aceitei o projeto em Bruxelas porque percebi que não podia continuar a viver metade de mim mesma só para agradar aos outros. Mas todos os dias pensava no Ricardo: estaria bem? Sentiria a minha falta? Teria encontrado finalmente o seu lugar ao sol?

Em Bruxelas conheci pessoas incríveis e aprendi mais sobre mim do que em toda a vida anterior. Mas havia noites em que chorava sozinha no quarto do hotel, desejando poder partilhar as minhas vitórias com alguém que realmente me conhecesse.

Meses depois voltei a Lisboa para uma breve visita e cruzei-me com o Ricardo num supermercado do bairro. Estava diferente: mais magro, olhar cansado mas sereno.

— Olá, Laura — disse ele com um sorriso triste.

Ficámos ali parados uns segundos, sem saber o que dizer. Por fim perguntei:

— Estás feliz?

Ele encolheu os ombros.

— Estou a tentar encontrar o meu caminho… E tu?

Sorri-lhe com sinceridade pela primeira vez em muito tempo.

— Também estou a tentar.

Agora olho para trás e pergunto-me: será possível conciliar amor e ambição sem perdermos quem somos? Ou será inevitável escolher entre aquilo que queremos ser e quem queremos amar? E vocês… já tiveram de fazer escolhas impossíveis assim?