Quando o Sucesso do Meu Ex Me Apagou — E Agora Ele Precisa de Mim
— Achas mesmo que podes aparecer assim, Miguel? Depois de tudo? — perguntei, a voz a tremer entre raiva e incredulidade.
Ele estava ali, parado à minha porta, com o mesmo olhar de menino perdido que me conquistou há tantos anos. Mas agora, esse olhar já não me fazia sorrir. Só me lembrava das noites em claro, dos silêncios frios e das mensagens não respondidas.
Miguel e eu conhecemo-nos na faculdade de Direito em Coimbra. Ele era o rapaz carismático, sempre rodeado de amigos, e eu a rapariga reservada, apaixonada por livros e por tardes de chuva. Apaixonámo-nos depressa, como se o mundo fosse acabar amanhã. Casámos cedo, contra o conselho da minha mãe, Dona Teresa, que sempre desconfiou do sorriso fácil dele.
No início, éramos só nós dois contra o mundo. Lembro-me de noites em que partilhávamos uma sopa instantânea e ríamos dos nossos sonhos de grandeza. Miguel prometia-me viagens a Paris e uma casa com vista para o Douro. Eu acreditava em tudo. Acreditava nele.
Quando ele conseguiu aquele estágio no escritório do Dr. Álvaro, tudo mudou. Começou a chegar tarde a casa, cheirando a perfume caro e vinho tinto. Dizia que era trabalho, mas eu via as mensagens no telemóvel dele: nomes de mulheres que eu não conhecia, convites para jantares que nunca incluíam esposas.
— Preciso disto para crescer na carreira — dizia ele, desviando o olhar.
Eu tentava compreender. Aguentei as ausências, os aniversários esquecidos, as discussões abafadas para não acordar os vizinhos. Aguentei até ao dia em que encontrei um lenço de seda no banco do carro dele. Não era meu.
A discussão dessa noite foi o princípio do fim. Miguel não negou. Disse apenas:
— Tu já não me entendes, Inês. O mundo mudou e tu ficaste para trás.
Fiquei sozinha no nosso apartamento alugado, rodeada por promessas partidas e contas por pagar. A minha mãe ajudou-me a levantar-me. Arranjei trabalho numa livraria pequena no centro da cidade. Não era Paris, mas era paz.
Os anos passaram. O nome de Miguel começou a aparecer nos jornais: “Advogado promissor fecha negócio milionário”, “Miguel Costa: o novo rosto do sucesso”. Eu via as fotos dele em eventos chiques, sempre com uma mulher diferente ao lado. Nunca olhava para mim quando nos cruzávamos na rua.
Até hoje.
Agora estava ali, mais magro, olheiras fundas e um fato amarrotado que já tinha visto dias melhores.
— Preciso falar contigo — disse ele, quase num sussurro.
Deixei-o entrar por pena ou curiosidade, nem sei bem. Sentou-se à mesa da cozinha onde tantas vezes tomámos pequeno-almoço juntos.
— Perdi tudo — confessou. — O escritório faliu, os amigos desapareceram… Não tenho para onde ir.
Olhei para ele e vi um homem quebrado. Mas também vi o homem que me deixou sozinha quando mais precisei.
— E agora lembras-te de mim? — perguntei, tentando conter as lágrimas.
Ele baixou a cabeça.
— Fui um idiota, Inês. Achei que podia ter tudo sem olhar para trás. Mas tu foste a única pessoa que realmente se importou comigo.
O silêncio pesou entre nós. Lembrei-me das noites em claro, das lágrimas escondidas na almofada para não preocupar a minha mãe. Lembrei-me da solidão de quem é esquecido por quem prometeu nunca partir.
— O que queres de mim? — perguntei finalmente.
— Só preciso de um sítio para ficar uns dias… até arranjar trabalho. Não tenho mais ninguém.
A minha mãe apareceu à porta da cozinha nesse momento, como se pressentisse o drama.
— Inês, não te metas nisso outra vez — avisou ela, olhando Miguel com desconfiança antiga.
— Mãe… — comecei eu, mas ela abanou a cabeça.
— Ele fez-te sofrer uma vez. As pessoas raramente mudam.
Miguel levantou-se abruptamente.
— Não vim aqui causar problemas! Se não quiseres ajudar-me, vou-me embora.
A raiva dele era quase cómica agora. Tantos anos a viver acima dos outros e agora não tinha onde cair morto.
— Não é isso… — suspirei. — Só preciso de pensar.
Ele saiu sem dizer mais nada. Fiquei ali sentada com a minha mãe a olhar para mim como quem vê uma criança prestes a tocar no fogo outra vez.
Nessa noite não dormi. Pensei em tudo o que passámos juntos: os sonhos partilhados, as traições silenciosas, o abandono cruel. Pensei também na solidão dele agora, tão parecida com a minha há anos atrás.
No dia seguinte fui trabalhar como sempre. A livraria estava vazia; só o senhor António apareceu para comprar o jornal e conversar sobre futebol. Mas eu mal ouvi as palavras dele. Só pensava em Miguel.
Ao fim do dia encontrei-o sentado num banco do Jardim da Sereia, encolhido contra o frio de março.
— Ainda estás zangada comigo? — perguntou ele sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao lado dele e ficámos em silêncio durante minutos longos demais.
— Não sei se consigo perdoar-te — disse-lhe finalmente. — Mas também não consigo ignorar-te agora que precisas de ajuda.
Ele sorriu pela primeira vez desde que voltou à minha vida.
— Obrigado… Nem sei como agradecer-te.
Levei-o para casa nessa noite. A minha mãe fez questão de dormir no sofá da sala “para garantir que nada acontece”, disse ela com um sorriso irónico.
Os dias seguintes foram estranhos: Miguel ajudava nas tarefas domésticas, procurava trabalho online e tentava conversar comigo sobre coisas banais como se nada tivesse acontecido entre nós. Mas havia sempre um peso no ar; uma história mal resolvida que pairava sobre cada gesto.
Uma noite ouvi-o chorar baixinho no quarto de hóspedes. Fui ter com ele sem saber bem porquê.
— Desculpa por tudo — murmurou ele entre soluços. — Desculpa ter-te deixado quando mais precisavas de mim.
Sentei-me ao lado dele e abracei-o como quem abraça uma memória antiga: com ternura e tristeza ao mesmo tempo.
Os dias passaram devagarinho até que Miguel arranjou trabalho numa pequena firma de advogados em Aveiro. No dia em que fez as malas para partir agradeceu-me com um abraço apertado e olhos marejados de lágrimas sinceras.
— Nunca vou esquecer o que fizeste por mim agora — disse ele antes de sair porta fora.
Fiquei sozinha outra vez mas desta vez sentia-me mais leve; como se tivesse finalmente fechado um capítulo doloroso da minha vida.
Agora pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoou tanto? Ou será que algumas feridas nunca saram completamente? E vocês… já tiveram de ajudar alguém que vos esqueceu quando mais precisavam?