Quando o Silêncio se Torna Grito: A Escolha de Felicidade de Evelina aos 60 Anos
— Mãe, não podes estar a falar a sério. Aos sessenta anos? Vais divorciar-te do pai agora? — A voz da Mariana ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o tilintar nervoso da colher contra a chávena.
Olhei para ela, para os olhos castanhos que herdei à força do tempo e das escolhas. O meu coração batia tão forte que temi que ela ouvisse. Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas, mas só me saiu um sussurro:
— Não aguento mais, filha. Não sou feliz há muito tempo.
O silêncio caiu pesado entre nós. Mariana pousou a chávena com força, salpicando café na toalha bordada pela minha mãe, como se quisesse marcar aquele momento para sempre. Senti-me pequena, quase invisível, como tantas vezes ao longo dos últimos quarenta anos de casamento com o António.
António nunca foi mau homem. Trabalhador, honesto, mas sempre ausente. A casa era o meu reino e a minha prisão. Ele chegava tarde, sentava-se à mesa, comia em silêncio e ia ver televisão. Os meus dias passavam entre tachos, roupa para lavar e o som abafado da televisão na sala. Os sonhos de juventude — viajar, aprender a pintar, dançar — foram ficando para trás, soterrados sob camadas de rotina.
Lembro-me de uma noite em particular. Chovia torrencialmente e eu estava sentada à janela, a ver as gotas escorrerem pelo vidro. António entrou, largou o casaco molhado na cadeira e perguntou:
— O jantar está pronto?
Nem um “boa noite”, nem um “como estás?”. Senti um nó na garganta. Quis gritar, quis perguntar-lhe se alguma vez reparou em mim, se sabia que eu existia para além das tarefas domésticas. Mas calei-me. Como sempre.
Foi nesse silêncio que comecei a morrer devagarinho. Cada dia igual ao outro, cada gesto automático. Mariana cresceu e saiu de casa para estudar em Coimbra. Fiquei sozinha com António e com o eco dos meus próprios pensamentos.
A decisão foi crescendo dentro de mim como uma semente teimosa. Comecei a sair mais, a ir ao café com as vizinhas, a fazer caminhadas pelo parque. Um dia, inscrevi-me num curso de pintura na junta de freguesia. Quando cheguei a casa com as mãos manchadas de tinta e um sorriso nos lábios, António olhou-me como se eu fosse uma estranha.
— Para que é isso agora? Já não tens idade para essas coisas.
Foi aí que percebi: nunca seria suficiente para ele. Nunca seria vista como alguém com desejos próprios.
A conversa com Mariana foi só o início da tempestade. Nos dias seguintes, os telefonemas dos meus irmãos não pararam:
— Evelina, estás doida? O que é que o povo vai dizer?
— E depois? Vais viver sozinha? Achas que alguém vai cuidar de ti?
Chorei muito nesses dias. Chorei pela menina sonhadora que fui, pela mulher invisível em que me tornei e pela coragem que me faltava há tanto tempo. Mas também chorei de alívio por finalmente me ouvir.
António não discutiu quando lhe disse que queria separar-me. Limitou-se a encolher os ombros e perguntou:
— Vais mesmo fazer isto?
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muitos anos.
— Vou. Preciso de viver antes que seja tarde demais.
A casa ficou mais silenciosa depois disso. Mariana deixou de me ligar durante uma semana inteira. Senti-me órfã da minha própria filha. Mas continuei: pintei quadros coloridos, dancei sozinha na sala ao som das músicas da Amália e aprendi a cozinhar só para mim.
Um dia, Mariana apareceu sem avisar. Entrou em casa com os olhos vermelhos e sentou-se à minha frente.
— Desculpa, mãe. Eu só… não percebia. Sempre pensei que tu e o pai eram felizes à vossa maneira.
Peguei-lhe nas mãos.
— Filha, às vezes o silêncio esconde muita dor. Não quero que passes a vida a pensar que é normal anulares-te pelos outros.
Ela chorou no meu colo como quando era pequena. E eu senti-me mãe outra vez — mas desta vez inteira.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver sozinha. Descobri que gosto do cheiro da terra molhada depois da chuva, que consigo dormir sem medo do silêncio e que sou capaz de me fazer feliz.
A família ainda comenta nas costas:
— A Evelina ficou maluca depois dos sessenta!
Mas já não me importo. Pela primeira vez em décadas, olho-me ao espelho e reconheço-me.
Hoje pintei um quadro novo: uma mulher de cabelos brancos a dançar num campo de girassóis. Acho que sou eu.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem caladas por medo do escândalo ou da solidão? E se todas nós gritássemos ao mesmo tempo — será que o mundo nos ouviria finalmente?