Quando o Silêncio Invadiu Minha Casa: O Dia em que Fui Deixada para Trás
— Vais mesmo deixar-me? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto o som do relógio da cozinha marcava cada segundo como se fosse uma sentença. O António olhou-me nos olhos, sem hesitar, e respondeu:
— Vou. Vou para Espanha com a Ana. Preciso de outra vida.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Senti as pernas fraquejarem, mas mantive-me de pé, agarrada ao balcão, com o cheiro dos pepinos frescos a misturar-se com o gosto amargo da traição. Trinta anos. Trinta anos de jantares, discussões, festas de aniversário, férias em Vila Nova de Milfontes, noites em claro à espera dos nossos filhos. Tudo resumido a uma mala feita à pressa e um bilhete de avião.
Lembro-me do olhar da minha filha mais velha, a Marta, quando lhe contei. Ela não chorou. Limitou-se a apertar os lábios e a dizer:
— Ele sempre foi egoísta, mãe. Não te deixes ir abaixo por causa dele.
Mas eu deixei. Deixei-me ir abaixo todos os dias durante meses. Oiço ainda o eco dos passos do António no corredor, o ranger da porta da entrada quando ele saiu pela última vez. A casa ficou vazia, fria. O cheiro dele desapareceu dos lençóis, mas as memórias ficaram presas nas paredes.
A Marta vinha visitar-me aos fins-de-semana, mas trazia sempre pressa. Tinha a sua vida, o seu marido, os seus problemas. O meu filho mais novo, o João, ligava de vez em quando de Lisboa:
— Mãe, estás bem? Precisas de alguma coisa?
Eu respondia sempre que não, mas precisava de tudo: precisava de companhia, de um abraço, de alguém que me dissesse que ia ficar tudo bem.
As vizinhas começaram a cochichar no café da esquina:
— Coitada da D. Teresa… O marido fugiu com aquela espanhola…
Não era espanhola. Era portuguesa como eu, mas vivia em Sevilha há anos. A Ana era uma colega do António do tempo da faculdade. Tinham-se reencontrado no Facebook e começaram a falar às escondidas. Descobri tudo depois: mensagens trocadas à noite, viagens de trabalho inventadas…
A traição não foi só dele. Senti-me traída por todos: pelos amigos que sabiam e não disseram nada, pela família dele que me evitava no supermercado, até pelos meus próprios filhos que pareciam querer que eu seguisse em frente depressa demais.
Os dias passaram lentos. Levantava-me tarde, arrastava-me pela casa como uma alma penada. Oiço ainda o som do telejornal ao fundo enquanto jantava sozinha na cozinha. Oiço o riso dos meus netos ao telefone, mas não consigo sentir alegria verdadeira.
Uma noite, depois de mais um jantar solitário, decidi sair para dar uma volta pelo bairro. Passei pelo jardim onde costumávamos passear ao domingo. Sentei-me num banco e chorei como não chorava desde criança. Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e perguntou:
— Está tudo bem consigo?
Olhei para ela e respondi:
— Não sei… Acho que não sei viver sozinha.
Ela sorriu com ternura:
— Ninguém sabe ao início. Mas depois aprende-se.
Essas palavras ficaram comigo durante semanas. Comecei a sair mais vezes, a ir ao mercado municipal aos sábados de manhã, a conversar com a D. Rosa da mercearia. Um dia aceitei o convite da minha irmã para passar uns dias na Figueira da Foz. Rimos juntas como há anos não fazíamos.
Mas nem tudo era fácil. O António ligava de vez em quando:
— Precisas de alguma coisa? Como estão as coisas aí?
Respondi sempre com frieza:
— Está tudo bem. Cuida-te.
Por dentro queria gritar-lhe todas as mágoas acumuladas: as noites em claro à espera dele, as vezes em que abdiquei dos meus sonhos para apoiar os dele, os aniversários esquecidos… Mas calei-me sempre.
A Marta começou a afastar-se mais. Um dia discutimos feio:
— Mãe, tens de parar de viver no passado! — gritou ela.
— Não é assim tão fácil! — respondi eu, com lágrimas nos olhos. — Não sabes o que é acordar todos os dias e sentir este vazio!
Ela bateu com a porta e só voltou a falar comigo uma semana depois.
O João veio passar o Natal comigo nesse ano. Trouxe uma garrafa de vinho do Porto e tentou animar-me:
— Mãe, tens de te dar uma nova oportunidade. Vai dançar, vai viajar…
Olhei para ele e vi nos seus olhos a preocupação genuína. Mas como é que se recomeça aos 58 anos? Como é que se encontra sentido quando tudo aquilo que se construiu desaparece num instante?
Comecei a escrever num caderno velho que encontrei na gaveta da sala. Escrevia cartas ao António que nunca enviei, desabafos para mim própria, listas de coisas pelas quais ainda valia a pena lutar: ver os meus netos crescerem, sentir o sol na pele numa manhã de primavera, ouvir o mar na Nazaré.
Um dia cruzei-me com o António no supermercado. Ele estava diferente: mais magro, cabelo grisalho despenteado.
— Olá Teresa…
— Olá António.
Ficámos ali parados uns segundos embaraçados.
— Como estás? — perguntou ele.
— Sobrevivo — respondi.
Ele baixou os olhos e murmurou:
— Desculpa…
Não respondi. Peguei nas compras e fui embora sem olhar para trás.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que era há um ano atrás. Ainda sinto saudades do que perdi, mas aprendi a viver com elas. Aprendi que a solidão pode ser cruel, mas também pode ser libertadora.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres como eu existem por aí? Quantas vivem presas ao passado porque têm medo do futuro? Será que algum dia conseguimos mesmo perdoar quem nos magoou tanto?
E vocês? Já sentiram este vazio? Como é que se recomeça quando tudo parece perdido?