Quando o Silêncio Grita: O Recomeço de Maria em Lisboa
— Maria, não podes continuar assim! — A voz da minha filha, Inês, ecoava pela cozinha, misturada com o som metálico da colher a bater no chão. Olhei para ela, olhos marejados, mãos trémulas. O café espalhava-se pela mesa, e eu sentia-me tão pequena quanto aquela gota prestes a cair do tampo.
— Não percebes, filha? — respondi, tentando conter as lágrimas. — Desde que o teu pai se foi… eu já nem sei quem sou.
Inês suspirou, puxando uma cadeira para se sentar ao meu lado. — Mãe, já passaram dois anos. Tens de tentar… viver outra vez. Por mim. Por ti.
Mas como se volta a viver quando metade de nós desapareceu? Desde o funeral do António, a casa parecia maior, os silêncios mais longos. Os vizinhos cumprimentavam-me com aquele olhar de pena, e até o padeiro do bairro baixava a voz quando me via entrar. A solidão era uma presença constante, um fantasma que se sentava comigo à mesa todas as manhãs.
Naquela manhã, porém, algo mudou. Talvez tenha sido o olhar determinado da Inês ou o som seco da colher no chão. Senti uma raiva súbita — não dela, mas de mim mesma. Deixei-me afundar na dor durante demasiado tempo.
— Vou sair — anunciei de repente, surpreendendo até a mim própria.
Inês sorriu, mas hesitou. — Vais mesmo?
— Vou. Preciso de ar.
Vesti o casaco e saí para as ruas de Lisboa. O bairro de Campo de Ourique estava igual: crianças a correr atrás de bolas, senhoras a discutir o preço do peixe no mercado, o cheiro a pão quente vindo da padaria do Sr. Manuel. Mas eu sentia-me diferente, como se estivesse a ver tudo pela primeira vez desde que fiquei viúva.
Caminhei sem destino até ao Jardim da Parada. Sentei-me num banco e fechei os olhos. O sol aquecia-me o rosto e, por um momento, quase consegui esquecer a dor. Foi então que ouvi uma voz familiar.
— Dona Maria? É mesmo a senhora?
Abri os olhos e vi a Teresa, antiga amiga dos tempos da escola primária. Não nos víamos há anos.
— Teresa! — exclamei, surpreendida.
Ela sentou-se ao meu lado sem cerimónias. — Ouvi dizer… sobre o António. Sinto muito.
Assenti em silêncio. Teresa não era de rodeios.
— Sabe, Maria… eu também fiquei sozinha há pouco tempo. O Carlos foi-se embora com outra. — Disse isto com uma amargura resignada, mas depois sorriu. — Mas sabe que mais? Não deixei que isso me destruísse. Juntei-me ao grupo de leitura aqui do bairro. Venha connosco! Faz bem à alma.
Hesitei. Eu? Num grupo de leitura? Sempre fui tímida, reservada… mas talvez fosse isso mesmo que precisava.
— Vou pensar nisso — respondi.
Teresa apertou-me a mão com força. — Pense rápido. A vida não espera por ninguém.
Voltei para casa com o coração mais leve. Inês estava à minha espera na sala.
— Então? — perguntou ela.
— Encontrei a Teresa. Falou-me de um grupo de leitura… talvez vá experimentar.
O rosto da minha filha iluminou-se de esperança. — Isso é ótimo, mãe!
Naquela noite, sonhei com António pela primeira vez em meses. Ele sorria para mim do outro lado da mesa da cozinha, como fazia todas as manhãs antes de sair para o trabalho na Carris. Acordei com lágrimas nos olhos, mas também com uma sensação estranha de paz.
Na semana seguinte, fui ao grupo de leitura. O salão paroquial estava cheio de gente: senhoras idosas, alguns homens reformados e até um rapaz novo que lia poesia em voz alta. Senti-me deslocada no início, mas Teresa apresentou-me a todos com entusiasmo.
— Esta é a Maria! Perdeu o marido há pouco tempo, mas tem muito para dar! — disse ela alto demais, fazendo-me corar.
No final do encontro, uma das senhoras mais velhas aproximou-se de mim.
— Sabe, minha querida… também perdi o meu há vinte anos. No início pensei que ia morrer de tristeza… mas depois percebi que ainda tinha muito para viver. Não se feche ao mundo.
Essas palavras ficaram comigo durante dias. Comecei a sair mais vezes: ia ao mercado sozinha, tomava café na esplanada do bairro e até aceitei ajudar Inês com os netos ao fim-de-semana.
Mas nem tudo era fácil. O meu filho mais velho, Rui, não gostava das mudanças.
— Mãe, não devias andar por aí sozinha! E esse grupo… não sabes quem são aquelas pessoas! — dizia ele sempre que nos víamos.
— Rui, tenho 65 anos, não 90! Preciso disto para mim! — respondia-lhe eu, tentando não perder a paciência.
Ele bufava e mudava de assunto. Sempre foi protetor demais desde pequeno… mas agora era eu quem precisava de espaço para crescer outra vez.
Os meses passaram e fui ganhando confiança. No grupo de leitura conheci o Joaquim, viúvo como eu. Começámos a conversar sobre livros e logo passámos para conversas sobre a vida: os filhos ingratos dele, as saudades das esposas que partilharam connosco tantas décadas…
Uma tarde, depois do grupo, Joaquim convidou-me para tomar um café no Martinho da Arcada.
— Maria… já pensou em viajar? — perguntou ele enquanto mexia o açúcar no café.
Sorri tristemente. — Viajar? Já nem sei se me lembro como se faz isso…
Ele riu-se baixinho. — Nunca é tarde para aprender outra vez.
Começámos a planear pequenas escapadelas: Sintra num sábado chuvoso; Cascais numa tarde solarenga; até Fátima fomos rezar pelos nossos entes queridos perdidos.
A família reagiu mal no início. Inês ficou preocupada:
— Mãe… tens mesmo a certeza? Não é cedo demais?
Rui ficou furioso:
— Estás a desrespeitar a memória do pai!
Chorei muito nessa noite. Senti-me dividida entre o passado e o futuro; entre honrar António e permitir-me ser feliz outra vez.
No entanto, lembrei-me das palavras da senhora do grupo: “Não se feche ao mundo.” António nunca quis que eu fosse infeliz; sempre me disse que devia aproveitar cada dia como se fosse o último.
Com o tempo, Inês aceitou Joaquim na família. Rui demorou mais tempo; só quando viu os netos felizes por me ver sorrir outra vez é que baixou as armas.
Hoje olho para trás e quase não reconheço aquela mulher que deixou cair a colher na cozinha. Ainda sinto falta do António todos os dias; há silêncios que nunca se preenchem totalmente. Mas aprendi que é possível recomeçar mesmo quando tudo parece perdido.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só vida? E será egoísmo querer ser feliz outra vez depois de tanta dor? Gostava de saber o que vocês pensam…