Quando o Silêncio Grita: O Peso de Duas Perdas na Mesma Casa

— Não me peças para perdoar, mãe. Não consigo. Não agora. — As palavras saíram-me num sussurro rouco, mas cada sílaba parecia um grito dentro da sala de estar, onde o cheiro a café frio e lágrimas secas pairava no ar. A minha mãe, Maria do Carmo, sentada à minha frente, olhava para as mãos trémulas, incapaz de me encarar.

O relógio da parede marcava as três da manhã. O silêncio era cortado apenas pelo som do vento a bater nas janelas da nossa casa em Vila Nova de Gaia. A polícia tinha acabado de sair. O corpo do meu filho mais novo, o Tiaguinho, ainda estava no hospital, à espera de autópsia. Um ano antes, perdera a Leonor, também sob os cuidados da minha mãe. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo sítio, mas na minha família caiu — e destruiu tudo.

Lembro-me do telefonema. Estava no trabalho, numa loja de roupa no centro do Porto, quando o telemóvel tocou. Era a minha mãe, com a voz embargada:

— Marta… vem rápido… o Tiago não acorda…

Corri pelas ruas como se pudesse fugir ao destino. Quando cheguei, já era tarde demais. O médico olhou-me com aquele olhar vazio de quem já viu demasiada dor:

— Fizemos tudo o que podíamos.

A minha mãe soluçava num canto, murmurando desculpas que eu não queria ouvir. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como podia isto acontecer outra vez? Como podia confiar nela depois do que aconteceu à Leonor?

Na altura da morte da Leonor, disseram que foi um acidente — uma queda nas escadas enquanto a minha mãe estava na cozinha. Eu quis acreditar. Quis perdoar. Mas agora… agora tudo parecia suspeito, tudo parecia mentira.

O meu marido, Rui, não me perdoou por ter deixado as crianças com ela outra vez. Depois da primeira tragédia, afastou-se de mim, dormia no sofá e falava pouco. Agora, depois da segunda perda, saiu de casa sem dizer palavra. Deixou-me sozinha com a minha mãe e com o eco dos risos dos meus filhos que nunca mais voltariam.

As vizinhas cochichavam à porta:

— Aquela família está amaldiçoada…
— Como é possível perder dois filhos assim?

Eu queria gritar-lhes que não sabiam nada, que não sentiam metade do que eu sentia. Mas a verdade é que eu própria não sabia o que pensar. A polícia abriu um inquérito. A minha mãe foi chamada para depor. Os jornais locais começaram a falar em negligência, em possível crime.

Numa noite de insónia, sentei-me à mesa da cozinha com a minha mãe.

— Diz-me a verdade, mãe. O que aconteceu mesmo?

Ela chorou baixinho:

— Eu só fui buscar o leite… Ele estava a dormir… Quando voltei já não respirava…

— E com a Leonor? Também foi só um acidente?

Ela hesitou. Vi nos olhos dela um medo antigo, uma culpa que talvez nunca tivesse confessado.

— Eu… eu estava cansada… adormeci no sofá… Quando acordei já era tarde demais…

Senti uma náusea profunda. Como é que uma mãe pode falhar assim? Como é que eu pude confiar nela depois da primeira vez? Senti-me cúmplice pelo meu desejo desesperado de acreditar que tudo ia ficar bem.

Os dias seguintes foram um pesadelo sem fim: entrevistas com assistentes sociais, perguntas dos polícias, olhares acusadores dos familiares do Rui. A minha sogra disse-me na cara:

— Se tivesses sido uma mãe atenta isto não acontecia.

Quis responder-lhe que precisava de trabalhar para pagar as contas, que não tinha outra opção senão deixar as crianças com a minha mãe. Mas as palavras morreram-me na garganta.

O funeral do Tiaguinho foi ainda mais vazio do que o da Leonor. Amigos afastaram-se, familiares evitaram-me. Só restávamos eu e a minha mãe — duas mulheres destroçadas por perdas irreparáveis e por uma culpa impossível de partilhar.

Uma noite ouvi a minha mãe a rezar baixinho no quarto dela:

— Deus, leva-me antes que ela me odeie para sempre…

Senti pena dela, mas também raiva. Porque é que ela não foi honesta comigo? Porque é que nunca admitiu que estava cansada demais para cuidar dos meus filhos? Porque é que eu própria não vi os sinais?

A polícia acabou por acusá-la formalmente de negligência grave. O julgamento foi marcado para setembro. Eu fui chamada como testemunha. Passei noites sem dormir a pensar no que dizer em tribunal: defender a minha mãe ou exigir justiça pelos meus filhos?

No dia do julgamento, olhei para ela no banco dos réus — tão pequena e frágil — e lembrei-me das noites em que me embalava quando era criança. Lembrei-me também das vezes em que me deixou sozinha porque tinha de trabalhar horas extra na fábrica de conservas para nos sustentar depois do meu pai nos ter abandonado.

Quando chegou a minha vez de falar, tremi dos pés à cabeça:

— Amo a minha mãe… mas perdi tudo o que tinha por causa dela.

O juiz olhou para mim com compaixão e dureza ao mesmo tempo.

No final, a minha mãe foi condenada a pena suspensa e ficou proibida de cuidar de menores. Saiu do tribunal cabisbaixa, sem conseguir olhar-me nos olhos.

Hoje vivo sozinha num T1 alugado em Matosinhos. O Rui pediu o divórcio e levou consigo as poucas memórias felizes que restavam. A minha mãe mudou-se para casa da minha tia em Braga e raramente falamos.

Às vezes pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoar — a ela ou a mim própria. Se algum dia vou voltar a confiar em alguém ou se este vazio vai ser sempre maior do que qualquer esperança.

E vocês? Acham possível reconstruir uma vida depois de perder tudo? Conseguem perdoar quem vos magoou mesmo sem intenção? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…