Quando o Silêncio Grita: O Eco das Palavras que Precedem o Fim
— Outra vez a chegar tarde, Patrícia? — A voz de Alexandre ecoou pela sala, carregada de cansaço e desconfiança. Eu ainda nem tinha pousado a mala e já sentia o peso do dia dobrar-se sobre mim. O relógio marcava 20h15, e o jantar arrefecia na mesa.
— Tive uma reunião que se prolongou, Alexandre. Não foi de propósito. — Tentei manter a calma, mas a minha voz tremia. Sabia que aquela conversa era apenas mais um capítulo de uma história que já não era nossa.
Ele suspirou, desviando o olhar para a televisão. — Pois, trabalho, sempre o trabalho. Parece que já nem existo para ti.
Aquelas palavras feriram-me mais do que qualquer grito. Não era a primeira vez que as ouvia. Ultimamente, frases como “Já nem existo para ti” ou “Estamos apenas a partilhar uma casa” tornaram-se tão comuns entre nós como o silêncio desconfortável dos pequenos-almoços apressados.
Lembro-me de quando tudo era diferente. Quando nos conhecemos na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, éramos inseparáveis. Ríamos até às lágrimas nos bancos do Jardim da Estrela, sonhávamos com viagens e filhos, fazíamos promessas ao luar. Mas a vida adulta chegou depressa demais: contas para pagar, carreiras para construir, expectativas familiares a cumprir.
O primeiro grande abalo veio com a morte do meu pai. Alexandre tentou apoiar-me, mas eu fechei-me no meu luto. Ele não compreendia o vazio que me consumia, e eu não sabia pedir ajuda. Foi aí que começaram os desencontros.
— Não sei como te ajudar se não falas comigo! — gritou ele uma noite, depois de me encontrar a chorar no quarto escuro.
— Nem tudo se resolve a falar! — respondi, num sussurro quase inaudível.
A partir desse momento, as nossas conversas tornaram-se cada vez mais raras e carregadas de acusações veladas. A minha mãe dizia-me: “Patrícia, casamento é feito de cedências.” Mas eu sentia que já tinha cedido tudo: os meus sonhos de estudar fora, as noites com amigas, até a minha própria tristeza.
Alexandre também mudou. O homem carinhoso e divertido deu lugar a alguém amargo, sempre pronto a apontar as minhas falhas.
— Se ao menos fosses mais como a tua irmã, sempre tão dedicada à família… — atirou ele um dia, depois de uma discussão sobre as férias de verão.
Essas comparações matavam-me por dentro. A minha irmã Teresa era o exemplo perfeito: casada há dez anos, dois filhos impecáveis, jantares de domingo em família. Eu sentia-me cada vez mais deslocada, como se estivesse a falhar em todos os papéis: mulher, filha, profissional.
As discussões intensificaram-se quando decidi aceitar uma promoção no escritório. O novo cargo exigia mais horas e viagens ocasionais ao Porto. Alexandre não escondeu o desagrado.
— Então agora vais andar sempre fora? E eu fico aqui a fazer de babá do cão? — ironizou.
— Alexandre, isto é importante para mim! Não podes apoiar-me pelo menos uma vez?
Ele levantou-se abruptamente da mesa:
— Sempre tu e os teus sonhos! E eu? Alguma vez pensaste no que eu quero?
Fiquei sozinha na cozinha, com lágrimas a escorrer pela cara. Senti-me egoísta e injustiçada ao mesmo tempo. Porque é que amar alguém podia ser tão difícil?
Os meses passaram e as frases cortantes multiplicaram-se:
— Já nem me lembro da última vez que estivemos juntos sem discutir.
— Se é para isto, mais vale cada um seguir o seu caminho.
— Sinto-me sozinho nesta casa.
— Tu mudaste.
Cada uma destas frases era como um prego no caixão do nosso casamento. Tentámos terapia de casal, mas as sessões eram apenas mais um palco para acusações mútuas.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as tarefas domésticas — sim, até isso servia de faísca — Alexandre atirou:
— Sabes qual é o teu problema? Achas que és melhor do que toda a gente!
Fiquei sem palavras. Nunca me tinha sentido tão incompreendida. Saí de casa e fui dar uma volta pelo bairro. As luzes das janelas alheias pareciam prometer vidas mais fáceis e felizes.
No regresso, encontrei Alexandre sentado no sofá, cabeça entre as mãos.
— Isto não está a resultar, pois não? — perguntou ele, sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao seu lado. O silêncio entre nós era ensurdecedor. Finalmente respondi:
— Não sei quando deixámos de ser nós.
Naquela noite dormimos em quartos separados pela primeira vez desde que casámos.
Os dias seguintes foram vividos em piloto automático. No trabalho fingia normalidade; em casa evitávamos cruzar olhares. A minha mãe percebeu logo:
— Filha, não podes viver assim. O amor não é suposto doer todos os dias.
Mas eu tinha medo do fracasso. Medo do que os outros iriam dizer. Medo de ficar sozinha aos 38 anos.
Foi Teresa quem me deu coragem:
— Patrícia, ninguém tem o direito de te julgar por procurares ser feliz. Nem mesmo tu própria.
Numa sexta-feira chuvosa sentei-me com Alexandre à mesa da cozinha onde tantas vezes sonhámos juntos.
— Acho que está na hora de sermos honestos um com o outro — comecei, com a voz embargada.
Ele assentiu em silêncio.
Falámos durante horas: das mágoas antigas, das expectativas defraudadas, dos sonhos adiados. Chorámos juntos pela última vez.
No final daquela conversa sabíamos ambos: o nosso casamento tinha chegado ao fim.
O divórcio foi doloroso mas civilizado. Dividimos os livros, as fotografias e até a custódia do cão. Os amigos escolheram lados; a família tentou consolar-nos com clichés bem-intencionados.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Campo de Ourique. Às vezes sinto falta do “nós”, mas aprendi a gostar do “eu” outra vez. Alexandre seguiu com a vida dele; dizem que está a namorar uma colega do escritório.
Às vezes dou por mim a pensar nas palavras que dissemos — e nas que nunca tivemos coragem de dizer. Será que podíamos ter feito diferente? Ou será que há relações destinadas a terminar quando as frases certas se transformam em feridas?
E vocês? Já sentiram o silêncio gritar mais alto do que qualquer discussão? O que fariam se percebessem que o amor se perdeu nas entrelinhas?