Quando o Silêncio Ecoa Mais Alto: A Solidão de Dona Irenilda

— Dona Irenilda, a senhora pode me ajudar com o correio outra vez? — perguntou a Dona Rosa, já com a voz cansada, apoiada no corrimão do terceiro andar.

Eu sorri, mesmo sentindo o peso das sacolas que trazia do supermercado. — Claro, Dona Rosa. Deixe comigo. — E subi mais um lance de escadas, equilibrando as compras dela e as minhas.

Era sempre assim. Desde que me mudei para este prédio em Benfica, há mais de trinta anos, virei referência. A Irenilda que resolve, que escuta, que faz bolo para as reuniões da assembleia de condóminos. A Irenilda que recolhe assinaturas para o conserto da caldeira, que leva sopa para o Sr. Manuel quando a esposa dele foi internada. Eu era aquela pessoa para quem todos batiam à porta quando precisavam de qualquer coisa.

Mas ninguém nunca perguntou se eu precisava de algo.

A minha filha, Sofia, diz que sou demasiado boa. — Mãe, tu dás demais. As pessoas aproveitam-se. — Eu ria e dizia: — Sofia, um dia vais perceber que ajudar é o que nos faz humanos.

Nunca imaginei que a vida me fosse ensinar o contrário.

Foi numa manhã de março, chuvosa e fria, que tudo mudou. Desci apressada para ir buscar pão fresco à padaria da esquina. O chão do átrio estava molhado, alguém devia ter entrado com os sapatos sujos de chuva. Escorreguei e ouvi um estalo seco na perna. A dor foi tão forte que quase desmaiei.

Fiquei ali caída, sozinha, durante minutos que pareceram horas. O eco dos meus próprios gemidos misturava-se ao barulho distante do elevador avariado. Ninguém apareceu. Ninguém ouviu.

Consegui arrastar-me até ao meu apartamento no rés-do-chão, suando frio e chorando baixinho. Liguei para a Sofia, que veio a correr do trabalho e me levou ao hospital. Fratura exposta na tíbia. Gesso até à coxa. Pelo menos dois meses sem pôr o pé no chão.

Os primeiros dias em casa foram um tormento. Sofia vinha sempre que podia, mas trabalhava muito e tinha os filhos pequenos para cuidar. Eu não queria ser peso para ela. Olhava pela janela e via os vizinhos a passar apressados, alguns olhavam para cima, outros nem isso.

Esperei. Todos os dias esperei.

Esperei que alguém batesse à porta com um tupperware de sopa quente, como eu tantas vezes fizera. Esperei que alguém perguntasse: — Dona Irenilda, precisa de alguma coisa? Quer que lhe vá buscar pão?

Nada.

O telefone tocava pouco. Às vezes era Sofia, outras vezes era uma chamada automática da farmácia a lembrar-me dos medicamentos. O silêncio era ensurdecedor.

No terceiro domingo após o acidente, ouvi vozes no corredor. Era a Dona Rosa e o Sr. Manuel a conversar sobre a reunião do condomínio.

— Achas que a Irenilda vai aparecer? — perguntou o Sr. Manuel.

— Com aquela perna? Duvido! — respondeu Dona Rosa com um suspiro.

Fiquei à espera que batessem à porta, nem que fosse só para perguntar se eu queria delegar o meu voto. Mas nada.

Na segunda-feira seguinte, tentei levantar-me sozinha para ir buscar água à cozinha. O gesso pesava como chumbo e acabei por deixar cair o copo no chão. Sentei-me na cadeira da sala e chorei como uma criança perdida.

Lembrei-me de todas as vezes em que fui eu a acudir aos outros: quando o filho da Dona Rosa teve uma crise de asma e fui eu que chamei o INEM; quando organizei a recolha de roupas para a família do 2º esquerdo depois do incêndio; quando fiz companhia ao Sr. Manuel nas tardes em que ele ficou viúvo.

Agora era eu quem precisava de companhia.

Na quarta semana, Sofia trouxe-me um bolo feito pelos netos. — Mãe, tens de comer melhor! — disse ela, tentando animar-me.

— Sabes o que é estranho? — perguntei-lhe baixinho. — Ninguém aqui veio perguntar se eu precisava de ajuda.

Sofia olhou-me com pena e raiva ao mesmo tempo. — Eu avisei-te, mãe…

— Não digas isso — interrompi-a. — Não quero ficar amarga.

Mas já estava amarga por dentro.

Os dias foram passando devagarinho, cada um mais igual ao outro. Comecei a reparar em detalhes: as vozes no corredor calavam-se quando passavam pela minha porta; os risos das crianças do 4º andar nunca mais ecoaram no patamar; até o carteiro parecia evitar olhar-me nos olhos quando deixava as cartas na caixa.

Uma tarde ouvi uma discussão vinda do 2º direito:

— Se calhar devíamos perguntar à Dona Irenilda se precisa de alguma coisa… — disse uma voz feminina.

— Para quê? Ela sempre se desenrascou sozinha — respondeu um homem com indiferença.

Senti uma pontada no peito. Era assim que me viam? Forte demais para precisar dos outros?

Na quinta semana, recebi uma carta da administração do condomínio a pedir para pagar uma taxa extra pelo arranjo do elevador. Sorri com ironia: fui eu quem organizou aquela petição há dois anos atrás e agora nem sequer podia usar o elevador.

Comecei a escrever cartas para mim mesma, como se fossem diários:

“Querida Irenilda,
Hoje ninguém bateu à porta outra vez. O silêncio pesa mais do que o gesso na perna…”

Às vezes imaginava diálogos com os vizinhos:

— Dona Irenilda, desculpe não termos vindo antes…
— Não faz mal, já me habituei ao silêncio.

Mas eram só fantasias para enganar a solidão.

No sexto domingo após o acidente, ouvi barulho no átrio: alguém deixava sacos de compras junto à minha porta. Abri devagarinho e vi a pequena Mariana do 1º andar a fugir escada acima.

— Mariana! — chamei baixinho.
Ela parou e olhou para trás, envergonhada.
— A minha mãe mandou deixar isto aqui…
— Diz-lhe obrigada por mim…
Ela acenou e desapareceu.

Foi só nesse dia que percebi: talvez as pessoas não saibam como agir quando quem sempre ajudou é quem precisa de ajuda.

Quando finalmente tirei o gesso e consegui sair à rua pela primeira vez, cruzei-me com Dona Rosa no átrio.
— Já está melhor? — perguntou ela, sem jeito.
— Estou… — respondi seca.
Ela hesitou:
— Sabe… pensei em vir cá ver como estava… mas achei que não queria ser incomodada…
Sorri tristemente:
— Às vezes precisamos mesmo é de ser incomodados.
Ela baixou os olhos e afastou-se apressada.

Agora caminho devagar pelo bairro e vejo tudo com outros olhos: as pessoas fechadas nas suas rotinas, cada um com os seus problemas, cada um no seu mundo pequeno demais para caber mais alguém.

Pergunto-me se valeu a pena ser sempre aquela que ajuda sem esperar nada em troca… ou se devia ter aprendido a pedir ajuda antes de precisar tanto dela.

E vocês? Já sentiram esse vazio quando mais precisavam? Será que estamos todos tão ocupados com as nossas vidas que esquecemos quem está mesmo ao nosso lado?