Quando o Rui Reclamou Demais, Decidi Que Era Hora de Lhe Ensinar Uma Lição

— Outra vez arroz, Sofia? — O tom do Rui cortou o ar da cozinha como uma faca. Eu estava a mexer o tacho, tentando não deixar transparecer o tremor nas mãos. — Não sei como é que consegues comer sempre a mesma coisa. Já te disse mil vezes que podias variar, fazer um bacalhau à Brás, sei lá…

Engoli em seco. O cheiro do arroz com frango, que sempre me lembrava os almoços de domingo em casa da minha mãe, agora parecia enjoativo. — Se não gostas, podes sempre cozinhar tu — murmurei, mas ele já estava a resmungar, a largar a pasta da empresa em cima da mesa, a suspirar alto como se carregar o mundo nas costas.

Casei com o Rui logo depois da faculdade. Tinha 23 anos, um diploma em Comunicação Social e sonhos de escrever para um jornal importante. Ele era engenheiro civil, daqueles que falam pouco mas tudo o que dizem parece definitivo. No início, achei-o seguro de si. Agora percebo que era só teimosia e uma necessidade constante de ter razão.

Os primeiros anos foram suportáveis. Havia discussões, claro, mas também havia risos e noites em que dançávamos na sala ao som do Rui Veloso. Depois veio a crise: ele perdeu o emprego durante a pandemia e nunca mais foi o mesmo. Começou a beber mais cerveja ao jantar, a reclamar do governo, do trânsito, de mim.

— Não percebo porque é que ainda não arranjaste um trabalho a sério — atirou ele uma noite, quando lhe contei que tinha enviado mais um currículo para uma revista online. — Isso de escrever não paga as contas.

— Rui, eu faço traduções, dou explicações…

— Isso não chega! — gritou ele, batendo com o punho na mesa. O nosso filho, o Miguel, olhou para mim com olhos assustados. Tinha só sete anos.

A partir desse dia, comecei a sentir-me uma sombra dentro da minha própria casa. Fazia tudo para evitar discussões: cozinhava o que ele gostava (ou tentava), limpava até os cantos mais escondidos, ajudava o Miguel com os trabalhos da escola e ainda sorria quando me perguntavam se estava tudo bem.

Mas nunca estava tudo bem. O Rui criticava tudo: o jantar, a roupa que eu vestia, a forma como falava com os vizinhos. Até o Miguel começou a perguntar-me se eu estava triste.

Uma noite, depois de mais uma discussão por causa do jantar — desta vez porque o arroz estava “empapado” — fechei-me na casa de banho e chorei baixinho para não acordar o miúdo. Olhei-me ao espelho e quase não me reconheci: olheiras fundas, cabelo apanhado à pressa, olhos sem brilho.

Foi aí que decidi: ou mudava alguma coisa ou ia acabar por desaparecer de mim mesma.

No dia seguinte, acordei cedo e fui ao café da Dona Graça. Sentei-me com um galão e um pastel de nata e escrevi uma lista: tudo o que eu gostava de fazer antes de casar; tudo o que deixei de fazer para agradar ao Rui; tudo o que queria voltar a ser.

Quando cheguei a casa, ele já estava à espera:

— O Miguel está atrasado para a escola! Onde é que andaste?

Respirei fundo. — Fui tomar um café. Precisava de pensar.

Ele bufou. — Pensar? Pensar no quê? No próximo arroz empapado?

Desta vez não respondi. Preparei o pequeno-almoço do Miguel e levei-o à escola. No caminho, ele perguntou:

— Mãe, porque é que tu e o pai estão sempre zangados?

Apertei-lhe a mão pequenina. — Às vezes as pessoas esquecem-se de como gostavam uma da outra no início. Mas eu nunca me esqueço de ti.

Nesse dia comecei a mudar pequenas coisas: inscrevi-me num workshop de escrita criativa na biblioteca municipal; comecei a correr no parque ao fim da tarde; deixei de perguntar ao Rui o que queria para jantar.

Ele reparou logo.

— Agora já nem perguntas se quero sopa? — perguntou ele numa terça-feira.

Sorri-lhe sem mostrar os dentes. — Hoje apeteceu-me fazer massa com legumes. Se não gostares, há pão na cozinha.

O olhar dele ficou frio. — Estás diferente.

— Estou cansada de tentar agradar a toda a gente menos a mim mesma.

O silêncio entre nós tornou-se mais pesado do que qualquer discussão. O Miguel sentia-o também: começou a ter pesadelos à noite, acordava a chorar e pedia-me para dormir com ele.

Uma noite ouvi o Rui ao telefone na varanda:

— Não sei o que se passa com ela… Está impossível… Só reclama…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Eu? Eu é que reclamava?

No fim-de-semana seguinte fui visitar os meus pais em Setúbal com o Miguel. O Rui ficou em casa porque “tinha coisas para fazer”. A minha mãe olhou-me nos olhos enquanto lavávamos a loiça:

— Sofia, tu não estás bem. Não tens de aguentar tudo sozinha.

Chorei no ombro dela como quando era criança. Contei-lhe tudo: as críticas constantes, os gritos, o medo de errar até na forma como dobrava as toalhas.

— Filha, ninguém merece viver assim — disse ela baixinho.

Na viagem de volta decidi: ia dar uma lição ao Rui. Não uma lição cruel ou vingativa — mas uma lição sobre respeito e sobre limites.

Na segunda-feira preparei-lhe um jantar especial: arroz branco sem sal e frango cozido sem tempero. Pus tudo numa travessa bonita e esperei por ele sentada à mesa com o Miguel.

Quando entrou na cozinha olhou para o prato e franziu o sobrolho:

— O que é isto?

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— É arroz com frango. Sem sal, sem tempero, sem nada do que tu costumas criticar. Só comida simples, como tu dizes que devia ser.

Ele ficou calado durante uns segundos eternos.

— Estás a gozar comigo?

— Não estou a gozar contigo, Rui. Só estou cansada de tentar adivinhar todos os dias qual vai ser a tua próxima crítica. A partir de hoje vou cozinhar para mim e para o Miguel como nos apetecer. Se quiseres outra coisa, faz tu.

O Miguel olhava-nos assustado. Peguei-lhe na mão e levei-o para o quarto antes que começasse outra discussão.

Nessa noite dormi pouco mas senti-me mais leve do que há anos.

Nos dias seguintes mantive-me firme: continuei as minhas rotinas novas, escrevi textos para concursos literários e comecei até a receber convites para colaborar em blogs portugueses sobre maternidade.

O Rui tentou várias vezes voltar ao velho padrão:

— Isto não é maneira de manter uma família!

Mas eu já não tinha medo das palavras dele. Comecei a responder-lhe com calma:

— Uma família mantém-se com respeito mútuo, Rui. E isso começa por mim.

Algumas semanas depois ele sugeriu irmos juntos à terapia de casal. Aceitei — não por ele, mas por mim e pelo Miguel.

A primeira sessão foi tensa:

— Ela mudou completamente! — disse ele à psicóloga. — Já nem parece a mesma mulher!

A psicóloga olhou para mim:

— E como se sente com essa mudança, Sofia?

Sorri pela primeira vez em muito tempo:

— Sinto-me viva outra vez.

Hoje olho para trás e vejo como foi difícil chegar aqui. Ainda há dias maus; ainda há discussões; mas agora sei quem sou e até onde posso ir sem me perder pelo caminho.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem assim em silêncio? Quantas Sofias há por aí à espera do momento certo para dizer basta? Talvez esteja na hora de começarmos todas a escrever as nossas próprias histórias.