Quando o Passado Bate à Porta: Uma História de Primeira Paixão e Anos Perdidos
— O que é que está aqui a fazer? — perguntou a mulher, com uma voz que misturava desconfiança e surpresa. O seu rosto, tão parecido com o meu aos vinte anos, fez-me recuar um passo. O coração batia-me descompassado, como se quisesse saltar do peito e fugir dali.
Nunca pensei que, aos sessenta anos, teria coragem de voltar àquele bairro de Lisboa onde vivi os meus anos mais felizes — e mais dolorosos. Mas ali estava eu, com as mãos trémulas, a olhar para aquela porta azul desbotada, atrás da qual tantas vezes sonhei com um futuro que nunca aconteceu.
— Eu… eu procuro o António. Ele ainda vive aqui? — perguntei, sentindo a voz falhar.
A mulher olhou-me de cima a baixo, avaliando-me como se tentasse decifrar um enigma antigo. Por um instante, vi nos seus olhos uma centelha de reconhecimento — ou seria apenas imaginação minha?
— O meu pai está no quintal. Quem devo dizer que é? — respondeu ela, já menos hostil.
Pai. A palavra ecoou dentro de mim como um trovão. António tinha uma filha — uma filha adulta, talvez com a minha idade quando nos conhecemos. Senti um aperto no peito, uma mistura de inveja e tristeza. E se aquela filha fosse também minha?
— Diga-lhe que é a Teresa. Teresa Martins. Ele vai lembrar-se.
Ela assentiu e desapareceu pelo corredor. Fiquei à porta, sentindo o cheiro a terra molhada e a roupa acabada de lavar. Lembrei-me das tardes em que António e eu fugíamos das aulas para passear junto ao Tejo, dos beijos roubados atrás das árvores do Jardim da Estrela, das promessas sussurradas ao ouvido.
O tempo passou devagar até ouvir passos pesados a aproximarem-se. António surgiu à porta, mais velho, mais curvado, mas com os mesmos olhos castanhos que me fizeram perder o fôlego há quarenta anos.
— Teresa? — disse ele, incrédulo.
— Olá, António.
Por um momento, ficámos em silêncio, presos num passado que nunca nos largou. Vi-lhe as mãos calejadas, o cabelo grisalho, as rugas profundas em volta dos olhos. Senti vontade de chorar e rir ao mesmo tempo.
— Nunca pensei voltar a ver-te — confessou ele, desviando o olhar.
— Nem eu. Mas há coisas que ficam por dizer uma vida inteira.
A filha voltou à sala e ficou a observar-nos de longe. O ambiente estava carregado de perguntas não feitas e respostas adiadas.
— Queres entrar? — perguntou António, hesitante.
Assenti e segui-o até à cozinha. Sentei-me à mesa onde provavelmente tantas refeições de família foram partilhadas. Olhei para as fotografias na parede: António com a filha em várias idades, uma mulher loira ao seu lado — provavelmente a esposa. Senti uma pontada de ciúme irracional.
— Então… porquê agora? — perguntou ele, servindo-me um café.
Suspirei fundo antes de responder:
— Porque nunca deixei de pensar em ti. Porque me pergunto todos os dias como teria sido se tivéssemos tido coragem de lutar contra tudo e todos.
Ele sorriu tristemente.
— Teresa… tu sabes que não era fácil. O meu pai queria que eu fosse para França trabalhar com ele. A tua mãe nunca gostou de mim…
— Eu sei — interrompi-o. — Mas podíamos ter tentado mais. Eu podia ter-te escrito. Tu podias ter voltado antes…
Ele pousou a chávena com força na mesa.
— E tu? Casaste? Tiveste filhos?
Baixei os olhos.
— Casei, sim. Com o Manuel. Tivemos dois filhos… mas nunca foi igual. Nunca consegui amar ninguém como te amei a ti.
O silêncio instalou-se novamente. A filha continuava a espreitar da porta, inquieta.
— Pai… está tudo bem? — perguntou ela finalmente.
António fez-lhe sinal para se aproximar.
— Filha, esta é a Teresa. Foi… foi alguém muito importante para mim há muitos anos.
Ela olhou-me com curiosidade renovada.
— Eu sou a Ana — disse ela, estendendo-me a mão.
Apertei-lhe a mão e senti uma estranha familiaridade naquele gesto. Tantas vezes imaginei como seria ter uma filha parecida comigo…
— Prazer, Ana.
O ambiente tornou-se menos tenso à medida que conversávamos sobre trivialidades: o tempo, os netos, as dificuldades da vida em Portugal nos últimos anos. Mas por baixo das palavras pairava sempre aquela pergunta: “E se…?”
Quando Ana saiu para ir buscar qualquer coisa ao supermercado, António virou-se para mim:
— Sabes… houve dias em que quase apanhei o comboio para te procurar. Mas depois vieram os filhos, o trabalho… e fui ficando preso à rotina.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.
— Eu também pensei tantas vezes em ti… mas tinha medo do que ia encontrar. Medo de mexer no passado e magoar quem não tinha culpa nenhuma.
Ele pousou a mão sobre a minha.
— Achas que ainda temos tempo para recuperar alguma coisa?
Fiquei sem resposta. O tempo não volta atrás; as feridas podem sarar mas deixam cicatrizes profundas.
Nesse momento ouviu-se uma voz vinda do corredor:
— Pai! O telefone é para ti!
António levantou-se apressado e deixou-me sozinha na cozinha. Olhei novamente para as fotografias na parede e senti um vazio imenso. Tantos anos perdidos por orgulho, por medo, por convenções sociais que hoje já não fazem sentido.
Quando António voltou, parecia mais velho ainda.
— Era a tua mulher? — perguntei sem conseguir evitar.
Ele assentiu.
— Está doente há algum tempo…
Senti-me egoísta por ter vindo ali remexer no passado quando ele tinha agora outras preocupações muito mais urgentes.
Levantei-me devagar.
— Acho que está na hora de ir embora.
Ele acompanhou-me até à porta. Antes de sair, olhou-me nos olhos:
— Teresa… obrigado por teres vindo. Mesmo que não possamos recuperar o tempo perdido, saber que ainda pensas em mim dá-me algum conforto.
Sorri-lhe tristemente e abracei-o pela última vez.
Ao descer as escadas daquele prédio antigo, senti o peso dos anos nas costas mas também uma estranha leveza no coração. Talvez nunca seja tarde demais para pedir desculpa ou dizer aquilo que ficou por dizer.
Agora pergunto-me: quantos de nós vivem presos ao passado? Quantas oportunidades deixamos escapar por medo ou orgulho? Se pudessem voltar atrás, teriam coragem de bater àquela porta?