Quando o Passado Bate à Porta: O Retorno de Um Amor Perdido

— Não pode ser… — murmurei, sentindo o coração bater tão forte que temi que todos à minha volta ouvissem. A chuva caía pesada sobre a calçada da Rua Augusta, e eu tentava equilibrar as compras e o guarda-chuva, quando aquele homem se aproximou. O casaco encharcado, os ombros caídos, o olhar perdido. Só quando chegou perto demais é que reconheci os olhos castanhos, agora mais apagados, de Miguel — o homem que amei e perdi há mais de dez anos.

Ele parou diante de mim, hesitante. Os lábios tremiam, mas nenhuma palavra saía. O silêncio entre nós era ensurdecedor. Senti um nó na garganta, uma mistura de raiva, saudade e medo. Como era possível? Depois de tudo o que aconteceu, depois de tantos anos sem notícias… ele estava ali, diante de mim, como se o tempo tivesse parado apenas para nos pregar esta peça cruel.

— Miguel? — arrisquei, quase num sussurro.

Ele apenas assentiu, os olhos marejados. Por um instante, vi o rapaz por quem me apaixonei aos vinte anos: irreverente, apaixonado pela vida e pelas pequenas coisas — como os pastéis de nata da Dona Rosa ou os passeios à beira do Tejo ao pôr do sol. Mas aquele homem à minha frente era uma sombra do passado.

— Preciso falar contigo… — a voz dele saiu rouca, quase inaudível.

Olhei em volta, sentindo-me exposta. As pessoas passavam apressadas, indiferentes ao drama que se desenrolava ali mesmo. Hesitei. Parte de mim queria fugir, outra queria gritar com ele, exigir respostas. Mas acabei por acenar com a cabeça e conduzi-lo até ao café da esquina.

Sentámo-nos frente a frente. O cheiro a café forte misturava-se com o perfume húmido da chuva. Miguel mexia nervosamente na chávena, evitando o meu olhar.

— Porquê agora? — perguntei, incapaz de esconder a mágoa na voz.

Ele respirou fundo. — Não sei por onde começar…

O silêncio voltou a instalar-se. Lembrei-me dos dias em que vivíamos juntos num pequeno apartamento em Alfama. Eu era estudante de Letras na Universidade de Lisboa; ele trabalhava num restaurante do bairro. Tínhamos pouco dinheiro, mas parecíamos ter tudo. Até que as discussões começaram: sobre dinheiro, sobre o futuro, sobre a família dele que nunca me aceitou.

A mãe de Miguel, Dona Amélia, fazia questão de me lembrar sempre que eu não era boa o suficiente para o filho dela. “Uma rapariga sem família importante nem futuro garantido”, dizia ela. Miguel tentava defender-me, mas acabava sempre dividido entre mim e a mãe. A tensão foi crescendo até ao dia em que ele simplesmente desapareceu. Sem explicações, sem despedidas.

— Desculpa… — murmurou ele agora, com lágrimas nos olhos. — Fui cobarde. Não consegui enfrentar tudo aquilo…

Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim. — E achas que foi fácil para mim? Ficaste sem dizer nada! Passei meses a perguntar-me o que fiz de errado…

Miguel baixou a cabeça. — Sei que não tenho desculpa. Mas precisava de fugir… A minha mãe ficou doente logo depois e eu… não consegui voltar atrás.

— E agora? Porque apareces assim? — perguntei, tentando controlar a voz trémula.

Ele olhou-me finalmente nos olhos. — A minha mãe morreu há três meses. E eu percebi que perdi tudo o que realmente importava…

As palavras dele pairaram no ar como uma sentença. Senti pena dele — mas também de mim mesma, daquela rapariga ingénua que acreditava que o amor podia vencer tudo.

— Não podes simplesmente voltar e esperar que tudo volte a ser como antes — disse-lhe.

Ele assentiu tristemente. — Eu sei… Só precisava de te ver uma última vez. Saber se estavas bem.

Fiquei em silêncio. Tantas vezes imaginei este reencontro: às vezes gritava-lhe tudo o que guardei; outras vezes abraçava-o e chorávamos juntos. Mas agora só sentia um vazio estranho.

— Estou bem — menti. Na verdade, não estava. Nunca consegui confiar verdadeiramente em ninguém depois dele. Tive outros namorados, mas acabava sempre por afastar-me antes que as coisas ficassem sérias demais.

Miguel sorriu tristemente. — Fico feliz por ti…

O telemóvel vibrou na minha mala. Era uma mensagem da minha irmã mais nova, Inês: “Mãe está pior outra vez. Podes vir já para casa?” Senti um aperto no peito. Desde que o nosso pai morreu num acidente de carro há dois anos, a minha mãe nunca mais foi a mesma. Eu e Inês revezávamo-nos para cuidar dela enquanto tentávamos manter os nossos empregos precários.

Levantei-me abruptamente. — Tenho de ir.

Miguel ficou parado, como se quisesse dizer mais alguma coisa mas não conseguisse encontrar as palavras.

— Adeus, Miguel — disse-lhe finalmente.

Saí do café com lágrimas nos olhos e corri pela rua molhada até ao metro. No caminho para casa, as memórias assaltavam-me: as noites em claro à espera de uma mensagem dele; as discussões com a minha mãe sobre como eu devia “seguir em frente”; os olhares de pena dos amigos quando souberam que ele me tinha deixado sem explicação.

Cheguei a casa e encontrei Inês sentada ao lado da nossa mãe, segurando-lhe a mão magra e trémula.

— Ela perguntou por ti — disse Inês baixinho.

Sentei-me ao lado da cama e acariciei o cabelo grisalho da minha mãe.

— Estou aqui, mãe…

Ela abriu os olhos com dificuldade e sorriu levemente.

— És tão forte… — murmurou ela.

Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto. Forte? Eu sentia-me tão frágil por dentro…

Nessa noite não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto minúsculo, ouvindo os sons da cidade lá fora e pensando em tudo o que tinha perdido e em tudo o que ainda podia perder.

No dia seguinte recebi uma carta de Miguel no correio do prédio antigo onde ainda morava com a minha mãe e irmã. Era curta:

“Perdoa-me por ter fugido quando mais precisavas de mim. Sei que não posso apagar o passado nem pedir-te para começares de novo comigo. Só queria que soubesses que foste o grande amor da minha vida e lamento ter sido demasiado fraco para lutar por nós.”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas secarem no meu rosto.

Durante semanas pensei se devia responder-lhe ou não. Inês dizia-me para esquecer; a minha mãe só queria ver-me feliz; os amigos achavam que eu devia dar uma segunda oportunidade à vida — não necessariamente a ele.

Um dia cruzei-me com Miguel no mercado do bairro. Ele sorriu-me timidamente e acenou de longe. Senti uma paz estranha: talvez algumas histórias não tenham final feliz porque precisam apenas de um final digno.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo decidir por nós? Quantas oportunidades perdemos porque não tivemos coragem de enfrentar os nossos fantasmas?

E vocês? Já tiveram de fechar uma porta para conseguir respirar outra vez?