Quando o Passado Bate à Porta: O Dia em que Encontrei o Meu Reflexo
— Dona Helena? — perguntou a voz do outro lado da porta, trémula, como se já me esperasse há anos.
O meu coração batia tão forte que temi que ela o ouvisse. A maçaneta girou devagar e, quando a porta se abriu, fiquei sem chão. Diante de mim estava uma mulher com os meus olhos, o meu nariz, até o mesmo jeito de segurar a mão ao peito. Por um instante, pensei estar a olhar para um espelho envelhecido.
— Sim? — insistiu ela, franzindo o sobrolho.
— Eu… eu sou a Helena. Procuro o António. — A minha voz saiu quase num sussurro.
Ela hesitou, estudando-me de alto a baixo. O silêncio entre nós era denso, carregado de perguntas não ditas. Finalmente, afastou-se para me deixar entrar.
— O António está no quintal. Pode esperar na sala.
Entrei devagar, sentindo o cheiro familiar de café acabado de fazer e pão torrado. O relógio de parede marcava três da tarde, mas para mim era como se o tempo tivesse parado há quarenta anos.
Sentei-me no sofá, as mãos trémulas no colo. A mulher sentou-se à minha frente, sem desviar o olhar.
— Desculpe a franqueza… mas conhecemo-nos? — perguntou ela.
Sorri, nervosa.
— Não… pelo menos não pessoalmente. Eu… fui namorada do António, há muitos anos. No liceu.
Ela assentiu lentamente, como se encaixasse uma peça perdida do puzzle.
— Eu sou a Maria do Céu. Mulher dele há trinta e cinco anos.
O nome soou como um trovão na minha cabeça. Maria do Céu. Lembrei-me das cartas que ele me escreveu depois de eu ter partido para Lisboa — cartas que nunca respondi, cartas que guardei numa caixa forrada a papel azul celeste. Sempre achei que tinha feito bem em cortar com o passado. Mas agora, sentada ali, sentia-me uma intrusa na vida de alguém que podia ter sido eu.
O António entrou na sala com passos pesados. O cabelo grisalho, os olhos ainda vivos. Quando me viu, parou abruptamente.
— Helena? — murmurou ele, como se dissesse um feitiço antigo.
O silêncio caiu sobre nós como uma manta pesada. Maria do Céu olhou de um para o outro e levantou-se.
— Vou buscar chá — disse ela, mas percebi que precisava de ar.
Ficámos sozinhos. O António sentou-se ao meu lado e pegou-me nas mãos.
— Nunca pensei voltar a ver-te — disse ele, com a voz embargada.
— Nem eu — respondi. — Mas precisava de respostas. Senti que faltava qualquer coisa na minha vida…
Ele sorriu tristemente.
— Faltava-nos coragem, Helena. Coragem para lutar contra tudo e todos naquela altura.
Lembrei-me das noites em que chorava sozinha no quarto da residência universitária, das cartas que escrevi e nunca enviei. Da minha mãe a dizer-me: “Helena, pensa no teu futuro. O António é bom rapaz, mas não tem nada para te dar.”
A Maria do Céu voltou com o tabuleiro do chá e pousou-o na mesa com mais força do que seria necessário.
— Então… vieram pôr a conversa em dia? — perguntou ela, tentando soar casual.
O António olhou para ela com ternura e culpa nos olhos.
— Céu… a Helena foi importante para mim. Mas tu és a minha vida agora.
Ela desviou o olhar e eu senti-me ainda mais deslocada.
— Não vim roubar nada a ninguém — disse eu rapidamente. — Só queria entender porque é que nunca mais me procuraste depois daquela última carta…
Ele suspirou e passou as mãos pelo rosto.
— Tentei, Helena. Fui a Lisboa duas vezes. A tua mãe disse-me que tinhas ido para fora do país…
Fiquei gelada. A minha mãe sempre foi perita em decidir por mim — até quando não tinha esse direito.
— Nunca saí de Lisboa — sussurrei. — Ela mentiu-te.
O António ficou pálido. Maria do Céu apertou-lhe o braço.
— António… já passaram tantos anos. Não vale a pena remoer isso agora.
Mas eu precisava de mais.
— E tu? — perguntei-lhe diretamente. — Alguma vez pensaste em mim?
Ela hesitou antes de responder:
— Pensei… principalmente quando nasceu a nossa filha mais velha. Sempre achei estranho ela parecer-se tanto contigo nas fotografias antigas do António…
Olhei para ela com espanto. Então não era só impressão minha: havia mesmo algo ali, uma ligação invisível entre nós três.
O António levantou-se e foi buscar uma caixa ao armário da sala. Abriu-a e tirou de lá uma fotografia antiga: eu e ele no baile de finalistas do liceu, sorridentes e cheios de sonhos.
— Guardei isto todos estes anos — disse ele baixinho.
Maria do Céu olhou para a fotografia e depois para mim. Nos seus olhos vi tristeza… mas também compreensão.
— Sabe, Helena? Quando casei com o António sabia que havia um fantasma entre nós. Mas nunca tive coragem de perguntar quem era realmente essa rapariga das fotografias antigas…
O António pegou-lhe na mão e olhou para mim:
— A vida levou-nos por caminhos diferentes… mas nunca deixei de te amar à minha maneira.
Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto. Tantos anos perdidos por orgulho, por medo, por decisões tomadas por outros…
Maria do Céu levantou-se e veio sentar-se ao meu lado. Pegou-me na mão com força inesperada.
— Talvez seja altura de fazermos as pazes com o passado — disse ela suavemente. — Todos nós merecemos isso.
Ficámos ali os três em silêncio durante muito tempo, cada um perdido nos seus pensamentos e arrependimentos.
Quando me despedi deles à porta, senti um peso sair-me dos ombros. Não tinha encontrado o final feliz dos romances antigos… mas talvez tivesse encontrado algo mais importante: perdão.
Enquanto caminhava pela rua estreita da aldeia onde tudo começou, perguntei-me: quantas vidas cabem numa só? E quantas vezes deixamos que o medo decida por nós? Talvez ainda vá a tempo de descobrir quem sou realmente.