Quando o Mundo Real Espera: Entre o Trabalho e os Mundos Virtuais do Meu Marido

— Vais ficar aí outra vez, Ricardo? — perguntei, tentando não deixar a voz tremer. O som dos tiros digitais ecoava pela sala, abafando o riso das crianças que brincavam no quarto ao lado.

Ele nem desviou o olhar do ecrã. — Só mais um bocado, Marta. Estou quase a acabar esta missão.

Quase a acabar. Sempre quase. Há um ano que vivemos neste quase. Desde que o Ricardo foi despedido da fábrica de componentes automóveis, a nossa vida ficou suspensa. No início, pensei que era só uma fase. Ele precisava de tempo para digerir o choque, para se reencontrar. Mas os dias passaram, depois as semanas, e agora já conto os meses. O subsídio de desemprego foi-se, as poupanças encolheram, e eu… eu tornei-me a única âncora desta casa.

Trabalho como administrativa numa clínica dentária em Almada. Não é glamoroso, mas paga as contas — ou pagava, antes de tudo subir: a renda, a luz, o pão. Os miúdos, o Tiago e a Leonor, têm seis e quatro anos. São a minha alegria e o meu peso. Porque quando chego a casa, cansada de sorrisos forçados e clientes impacientes, ainda me esperam banhos, jantares, trabalhos de casa e perguntas difíceis.

— Mãe, o pai vai jantar connosco hoje? — perguntou o Tiago uma noite, com aqueles olhos grandes que parecem sempre à beira das lágrimas.

— Vai, filho — menti. — Só está ocupado agora.

Mas ele não veio. O jantar arrefeceu na mesa enquanto eu tentava engolir a raiva e a tristeza. Senti-me invisível. Senti-me sozinha.

Às vezes pergunto-me quando é que deixámos de ser uma equipa. Antes, partilhávamos tudo: as contas, as decisões, os sonhos. Agora partilhamos silêncios e olhares fugidios. O Ricardo não é mau homem. Sempre foi um pai dedicado, um marido carinhoso. Mas perdeu-se algures entre o desemprego e os mundos virtuais onde pode ser herói sem sair do sofá.

Tentei conversar com ele. Uma noite sentei-me ao seu lado no sofá, enquanto ele matava monstros com estranhos do outro lado do mundo.

— Ricardo, precisamos de falar.

Ele suspirou, tirou os auscultadores por um segundo. — O que foi agora?

— Não podes continuar assim. Os miúdos sentem a tua falta. Eu também.

Ele olhou para mim como se eu fosse um obstáculo entre ele e o próximo nível.

— Achas que não sinto? Achas que isto é fácil para mim? — A voz dele subiu um tom. — Tu tens trabalho! Eu… eu só queria desligar um bocado.

— Um bocado? Já passou um ano! — O meu grito assustou até a mim própria.

Ele voltou ao jogo sem responder.

Naquela noite chorei baixinho na casa de banho para não acordar as crianças. Senti-me fraca por não conseguir resolver nada, por não conseguir trazê-lo de volta à realidade.

Os meus pais dizem para ter paciência. “Os homens têm orgulho”, diz a minha mãe. “Ele vai reagir quando sentir necessidade.” Mas quanto tempo mais posso esperar? As contas acumulam-se na gaveta da cozinha; há dias em que faço contas à vida antes de ir ao supermercado.

No trabalho finjo que está tudo bem. A minha chefe elogia-me por nunca faltar, por ser eficiente. Mal sabe ela que às vezes só queria desaparecer por uns dias, dormir até ao mundo parar de girar tão depressa.

A Leonor adoeceu em fevereiro. Uma gripe forte que nos levou ao hospital às duas da manhã. Eu sozinha com ela ao colo, enquanto o Ricardo dormia no sofá da sala, auscultadores nos ouvidos. Quando voltei para casa com ela febril nos braços, olhei para ele e senti uma raiva tão funda que tive medo de mim própria.

— Nem deste por falta dela — sussurrei.

Ele acordou sobressaltado, mas já era tarde demais para desculpas.

Comecei a evitar estar em casa nas horas em que ele jogava. Levava os miúdos ao parque ou à biblioteca. Às vezes sentava-me no carro só para respirar fundo antes de voltar à rotina.

Um dia encontrei uma carta do banco na caixa do correio: aviso de atraso no pagamento da renda. Senti o chão fugir-me dos pés. Liguei-lhe imediatamente.

— Ricardo, temos de falar agora! — gritei pelo telefone.

Desta vez ele ouviu-me. Quando chegou a casa estava pálido, olheiras fundas.

— O que é que queres que eu faça? Não há trabalho! Já enviei currículos…

— Mas não procuras há meses! Não podes continuar assim! — As palavras saíram como facas afiadas.

Ele chorou nesse dia. Pela primeira vez em muito tempo vi-o despido da armadura digital. Chorou como um miúdo perdido.

— Tenho medo, Marta… Medo de não conseguir voltar a ser quem era…

Sentei-me ao lado dele e abracei-o com força. Pela primeira vez em meses senti que talvez ainda houvesse esperança para nós.

Começámos aos poucos: combinámos horários para jogar, para procurar trabalho, para estar com os miúdos. Não foi fácil; houve recaídas e discussões feias. Mas também houve pequenos milagres: um sorriso do Tiago quando o pai foi buscá-lo à escola; a Leonor a pedir colo ao Ricardo; uma entrevista de emprego marcada.

Hoje ainda não está tudo resolvido. O Ricardo arranjou um part-time numa loja de informática enquanto continua à procura de algo melhor. Eu continuo cansada, mas menos sozinha.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim em silêncio? Quantas Martas seguram o mundo enquanto esperam que alguém regresse do seu próprio abismo?

E vocês? Já sentiram esta solidão dentro de casa? Como é que se volta a confiar quando tudo parece desabar?