Quando o Miguel Trouxe a Noiva Para Casa: O Dia em Que Tudo Mudou
— Mãe, precisamos falar contigo. — A voz do Miguel ecoou pelo corredor, carregada de uma urgência que me gelou o sangue. Olhei para ele e para a Andreia, de mãos dadas, os olhos brilhantes de quem traz uma notícia que muda tudo. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, mas já não me apetecia jantar.
Sentei-me à mesa, as mãos trémulas a segurar na chávena de chá. O Miguel hesitou, olhou para a Andreia como quem pede permissão para avançar. — Mãe… nós vamos casar. E… — fez uma pausa, engoliu em seco — pensámos em ficar aqui em casa, pelo menos até arranjarmos um apartamento nosso.
O silêncio caiu pesado. Senti o coração apertar-se no peito. O meu filho, o meu menino, agora homem feito, a pedir-me para partilhar o meu espaço com a mulher que escolheu. Senti-me invadida, traída até. Não era assim que eu tinha imaginado. Sempre sonhei vê-lo sair de casa com um sorriso, construir o seu lar, mas nunca pensei que o lar dele pudesse ser… o meu.
— Aqui? — A minha voz saiu mais aguda do que queria. — Mas… Miguel, isto é a nossa casa. Não é grande coisa, sabes bem. E…
A Andreia interrompeu-me com um sorriso tímido. — Dona Teresa, prometemos que não vamos incomodar. Só precisamos de uns meses. As rendas estão impossíveis em Lisboa…
Ela tinha razão. Eu própria sentia na pele o peso das contas, da reforma que mal dava para as despesas. Mas aquilo era diferente. Era o meu espaço, as minhas rotinas, os meus silêncios. E agora ia partilhá-los com uma estranha?
O Miguel percebeu o meu desconforto. — Mãe, eu sei que é pedir muito. Mas não temos outra hipótese. Eu ainda estou a acabar o estágio na Câmara, a Andreia está à procura de trabalho… Só precisamos de tempo.
Lembrei-me do pai dele, do António, que partiu cedo demais e me deixou sozinha a criar o Miguel. Lembrei-me das noites em claro, das febres, dos trabalhos de casa feitos à pressa na mesa da cozinha. Lembrei-me de tudo aquilo que sacrifiquei para lhe dar um futuro melhor. E agora ele pedia-me mais um sacrifício.
— Está bem — disse por fim, a voz embargada. — Mas há regras nesta casa. E respeito acima de tudo.
A Andreia sorriu aliviada e abraçou-me sem jeito. O Miguel beijou-me na testa como fazia quando era pequeno. Mas eu sabia que nada seria igual.
Os dias seguintes foram um caos silencioso. A Andreia tentava ajudar nas tarefas da casa, mas eu sentia cada gesto dela como uma invasão. O Miguel chegava tarde do estágio e mal falava comigo. À noite ouvia-os rir no quarto dele e sentia uma raiva surda crescer cá dentro.
Uma noite, não aguentei mais e desabafei com a minha irmã ao telefone.
— A Andreia mexe nas minhas coisas sem pedir! Ontem trocou os panos da cozinha de sítio! E o Miguel nem me olha nos olhos…
A minha irmã suspirou do outro lado da linha.
— Teresa, tens de aceitar que ele cresceu. Não podes prendê-lo para sempre.
Mas como se faz isso? Como se deixa partir um filho sem sentir que se está a perder tudo?
As discussões começaram a surgir por coisas pequenas: a loiça mal lavada, as compras esquecidas, o barulho à noite. Um dia apanhei-os aos dois na sala, a discutir baixinho.
— Não aguento mais isto — dizia a Andreia, os olhos vermelhos. — A tua mãe não gosta de mim.
— Não digas isso — respondeu o Miguel, mas percebi pela voz dele que também ele estava cansado.
Senti-me horrível. Eu era aquela sogra má das novelas? Aquela mulher amarga que não sabe largar o filho?
Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto onde tantas vezes embalei o Miguel nos braços. Lembrei-me do primeiro dia dele na escola, do medo que senti ao deixá-lo sozinho no portão. Agora era igual: tinha de deixá-lo ir.
Na manhã seguinte preparei o pequeno-almoço para todos e sentei-me à mesa com eles.
— Miguel, Andreia… — comecei, com a voz trémula — quero pedir-vos desculpa. Sei que não tem sido fácil para vocês aqui em casa. Eu também estou a aprender a lidar com isto tudo.
A Andreia chorou baixinho e apertou-me a mão.
— Dona Teresa… eu só queria que gostasse de mim.
Olhei para ela e vi ali uma rapariga assustada, longe da família dela em Viseu, a tentar construir uma vida nova numa cidade difícil.
— Eu gosto de ti — disse-lhe finalmente — só tenho medo de perder o meu filho.
O Miguel levantou-se e abraçou-me com força.
— Nunca vais perder-me, mãe. Mas preciso que confies em mim.
Nesse dia decidi mudar. Comecei a dar espaço aos dois, deixei de controlar tudo na casa. A Andreia passou a ajudar-me na cozinha e até me ensinou uma receita nova de bacalhau à Brás que aprendeu com a avó dela.
Pouco a pouco fomos encontrando um equilíbrio frágil entre as nossas rotinas e as deles. O Miguel arranjou um contrato na Câmara e a Andreia conseguiu trabalho numa loja no centro comercial.
Um dia chegaram a casa com um sorriso nervoso.
— Mãe… encontramos um T1 pequenino em Benfica! Vamos mudar-nos no próximo mês!
Senti uma alegria estranha misturada com tristeza. Ia voltar a ficar sozinha naquela casa cheia de memórias. Mas sabia que era assim que tinha de ser.
No dia da mudança ajudei-os a empacotar as coisas deles e chorei baixinho quando fecharam a porta atrás de si.
Agora passo os dias entre silêncios e recordações, mas também com orgulho por ter conseguido deixá-los partir.
Às vezes pergunto-me: será que fiz tudo certo? Será este o verdadeiro amor de mãe — saber quando é hora de abrir mão? E vocês? Já sentiram este aperto no peito ao verem um filho crescer?