Quando o Miguel entrou na minha vida: Uma história de força, amor e perda de si mesma
— Mariana, tu não percebes! Não é só sobre ti! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu fechava a porta do quarto com força. O som ecoou pela casa, misturando-se com o silêncio pesado que ficou depois da discussão. Sentei-me na cama, as mãos a tremer, o coração a bater tão forte que parecia querer saltar do peito. Por que é que tudo tinha de ser tão difícil? Por que é que amar alguém podia doer tanto?
Conheci o Miguel numa noite fria de janeiro, no Bairro Alto. Eu tinha acabado de sair de uma relação longa e estava convencida de que precisava de tempo para mim. Mas ele apareceu, com aquele sorriso meio torto e um olhar que parecia ver tudo o que eu tentava esconder. Lembro-me do cheiro a chuva e vinho tinto, das luzes amarelas dos candeeiros a refletirem-se nas pedras molhadas da rua.
— Estás sozinha? — perguntou ele, aproximando-se com uma confiança desarmante.
— Não — menti, sem saber porquê.
Ele riu-se, um riso rouco e quente.
— Eu também não. Agora já não estamos sozinhos.
Foi assim que começou. O Miguel era intenso em tudo: nas palavras, nos gestos, nas promessas. No início, senti-me viva como nunca antes. Ele fazia-me rir até às lágrimas, levava-me a sítios onde nunca tinha ido — desde concertos improvisados em Alfama até passeios de madrugada à beira do Tejo. Mas havia sempre uma sombra por trás daquele brilho: uma necessidade de controlar, de saber onde eu estava, com quem falava.
— Mariana, quem era aquele rapaz com quem estavas a falar no café? — perguntava ele, a voz baixa mas carregada de tensão.
— Era só o João, colega do trabalho. Estávamos a discutir um projeto.
— Não gosto dessas conversas. Não gosto que te rias assim para outros homens.
No início, achei que era ciúme passageiro. Senti-me até lisonjeada — alguém que se importava tanto comigo. Mas aos poucos fui percebendo que aquilo era mais do que ciúme. Era posse.
A minha mãe começou a notar as mudanças em mim. Eu já não saía tanto com as amigas, evitava falar ao telefone quando o Miguel estava por perto. Um dia, ela sentou-se ao meu lado na cozinha, enquanto eu fingia interesse nas notícias da televisão.
— Mariana, tu não és assim. Tens medo dele?
— Não digas disparates, mãe. Ele só se preocupa comigo.
Ela suspirou, apertando-me a mão.
— Preocupar-se não é prender-te. Tu eras livre antes dele.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Mas cada vez que pensava em afastar-me do Miguel, sentia um vazio insuportável. Ele tinha-se tornado o centro do meu mundo — ou talvez eu tivesse deixado de ter mundo próprio.
As discussões começaram a ser mais frequentes. Pequenas coisas tornavam-se grandes tempestades: uma mensagem não respondida, um jantar adiado por causa do trabalho, um sorriso trocado com alguém na rua.
— Mariana, tu não me respeitas! — gritava ele, atirando o telemóvel para cima da mesa.
— Miguel, eu só quero respirar! Preciso de espaço!
— Espaço para quê? Para me traíres?
Nessa noite dormi no sofá da sala dos meus pais. Senti-me uma criança outra vez, perdida e sem saber como sair daquele labirinto de emoções contraditórias.
O tempo foi passando e fui perdendo pedaços de mim. Deixei de pintar — algo que sempre me dava paz — porque ele dizia que era uma perda de tempo. Afastei-me das minhas amigas porque ele desconfiava de todas elas. Até o meu irmão mais novo começou a perguntar porque é que eu já não sorria como antes.
Um dia, depois de mais uma discussão violenta, fugi para casa da minha avó em Sintra. Sentei-me no jardim dela, rodeada pelo cheiro das rosas e pelo som distante dos sinos da igreja.
— Minha menina — disse ela, acariciando-me o cabelo — o amor não é prisão. O amor é asas.
Chorei no colo dela como há anos não chorava. Senti vergonha por ter deixado chegar tão longe. Senti raiva de mim mesma por não conseguir sair daquele ciclo vicioso.
O Miguel ligou dezenas de vezes naquela noite. Mensagens cheias de promessas e ameaças misturadas:
— Volta para mim ou nunca mais me vês!
— Desculpa, eu amo-te tanto…
— Se não voltares, faço uma loucura!
A minha avó tirou-me o telemóvel das mãos e desligou-o.
— Agora és tu primeiro. Cuida de ti.
Fiquei ali três dias inteiros sem contacto com ele. No início foi como atravessar um deserto: sentia falta dele em cada minuto, como se me faltasse o ar. Mas aos poucos comecei a lembrar-me de quem era antes dele: a Mariana que ria alto sem medo do ridículo; a Mariana que pintava quadros cheios de cor; a Mariana que sonhava viajar sozinha pelo mundo.
Quando voltei a Lisboa, decidi terminar tudo com o Miguel. Ele apareceu à porta da minha casa com flores e olhos vermelhos de chorar.
— Mariana, não me faças isto… Eu mudo! Eu prometo!
Olhei-o nos olhos e vi ali o mesmo rapaz apaixonado por quem me tinha apaixonado — mas também vi o homem que me tinha apagado aos poucos.
— Miguel… Eu amo-te. Mas amo-me mais a mim agora.
Ele chorou e implorou, mas eu fechei a porta com mãos trémulas e coração partido.
Os meses seguintes foram difíceis. Tive medo dele aparecer à minha porta; tive medo de nunca mais conseguir amar ninguém; tive medo de nunca mais ser inteira outra vez. Mas aos poucos fui reconstruindo os pedaços perdidos: voltei a pintar, voltei a sair com as amigas, voltei a rir sem pedir desculpa.
Hoje olho para trás e vejo aquela Mariana perdida com ternura e compaixão. Sei que muitas mulheres passam pelo mesmo — e muitas continuam presas porque têm medo de ficar sozinhas ou porque acreditam que merecem menos do que aquilo que sonharam para si próprias.
Pergunto-me: quantas vezes deixamos de ser quem somos por amor? E será que algum amor vale mesmo essa perda?