Quando o Meu Pai Veio Viver Comigo: Uma História de Limites, Culpa e Feridas Antigas

— Não me olhes assim, Mariana. Não sou nenhum inválido! — gritou o meu pai, a voz rouca a ecoar pela cozinha pequena do meu apartamento em Lisboa.

A colher caiu-me das mãos. O barulho metálico no chão foi como um tiro. Senti o sangue a ferver-me nas veias, mas engoli em seco. Já não era a primeira vez naquela semana que discutíamos. Desde que o meu pai viera viver comigo, depois do diagnóstico de insuficiência cardíaca, a minha vida virou um campo de batalha.

Nunca fui próxima dele. Cresci a vê-lo sair cedo e chegar tarde, sempre cansado, sempre ausente. A minha mãe dizia: “O teu pai é assim, não sabe ser de outra maneira.” Mas eu sabia que era mais do que isso. Era orgulho, era incapacidade de pedir desculpa, era aquela dureza que só os homens da geração dele conhecem.

Quando a médica disse que ele precisava de cuidados e não podia mais viver sozinho em Santarém, toda a família olhou para mim. A filha solteira, sem filhos, com um emprego flexível. “A Mariana pode”, disseram. E eu aceitei. Por culpa? Por obrigação? Talvez por uma esperança tola de que, finalmente, ele me visse.

Na primeira semana, tentei tudo. Fiz-lhe os pratos preferidos — bacalhau à Brás, arroz de pato — mas ele reclamava sempre: “Está sem sal”, “A tua mãe fazia melhor”. O cheiro a remédios misturava-se com o cheiro a comida e a ressentimento.

— Pai, tens de tomar os comprimidos agora — disse-lhe uma noite, já exausta.

Ele olhou-me com aqueles olhos cinzentos, duros como pedra.

— Não preciso que me digas o que fazer na minha própria vida.

Fui para o quarto e chorei baixinho. Senti-me uma criança outra vez, a tentar agradar-lhe sem nunca conseguir. Liguei à minha irmã, a Ana, que vive no Porto e só vinha a Lisboa nos fins de semana.

— Ele está impossível, Ana. Não sei quanto tempo aguento isto.

— Tens de ter paciência — respondeu ela. — Ele está doente, está assustado.

Mas ninguém via o que eu via: as noites em claro porque ele tossia sem parar; as discussões por causa do televisor sempre alto; o cheiro a tabaco escondido no ar, mesmo depois de eu lhe pedir para não fumar em casa.

Uma noite, acordei com um barulho estranho. Fui à sala e encontrei-o caído no chão.

— Pai! — gritei, ajoelhando-me ao lado dele.

Ele empurrou-me.

— Deixa-me! Não preciso da tua ajuda!

Chamei o INEM. No hospital, disseram-me que era só uma queda sem consequências graves. Mas eu sabia: estava a perder o controlo da situação.

Os dias passaram e as coisas pioraram. Ele recusava-se a tomar banho. Deixava comida espalhada pela casa. Uma vez encontrei-o a tentar sair sozinho para ir ao café da esquina.

— Não podes sair assim! — disse-lhe, desesperada.

— Não sou prisioneiro nesta casa! — gritou ele.

Comecei a faltar ao trabalho. O meu chefe chamou-me à parte:

— Mariana, tens de decidir o que queres fazer. Não podes continuar assim.

Senti-me encurralada. A família ligava todos os dias:

— Como está o pai?

— Tens de ter mais paciência.

— Ele sempre foi difícil…

Mas ninguém se oferecia para ajudar. A Ana vinha aos fins de semana e ficava duas horas. O meu irmão Pedro dizia que tinha filhos pequenos e não podia fazer mais.

Uma tarde, depois de mais uma discussão por causa dos remédios, sentei-me na varanda e olhei para Lisboa lá em baixo. O Tejo brilhava ao longe e eu senti-me tão pequena como nunca antes.

Lembrei-me da infância: dos Natais em Santarém, do cheiro a lareira, das discussões entre os meus pais quando achavam que eu não ouvia. Lembrei-me do dia em que ele me disse que eu nunca ia ser ninguém porque era demasiado sensível.

Chorei tudo ali mesmo. Senti raiva dele, da família, de mim própria por não conseguir ser melhor filha.

Naquela noite tomei uma decisão. Liguei à assistente social do hospital e perguntei sobre lares de idosos.

— É uma decisão difícil — disse ela. — Mas às vezes é o melhor para todos.

No dia seguinte contei-lhe:

— Pai, já não consigo cuidar de ti sozinha. Vou procurar um lar onde possas ter os cuidados de que precisas.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Vais livrar-te de mim como se fosse um trapo velho?

Senti o coração a partir-se em mil pedaços.

— Não é isso… Eu tentei… Mas já não consigo…

Ele virou-me as costas e não falou mais comigo nesse dia.

Quando finalmente consegui vaga num lar em Odivelas, levei-o lá numa manhã cinzenta. O silêncio no carro era pesado como chumbo. Quando chegámos, ele recusou-se a sair do carro.

— Isto é uma prisão — murmurou ele.

Ajudei-o a entrar. Os olhos dele estavam cheios de lágrimas mas ele não chorou à minha frente. Eu também não chorei ali. Esperei até estar sozinha no carro para desabar.

A família ficou chocada:

— Como foste capaz?

— Ele sempre disse que nunca queria ir para um lar!

Ninguém quis saber das noites sem dormir, das discussões diárias, do medo constante de algo lhe acontecer enquanto eu estava no trabalho. Ninguém viu as feridas antigas a abrirem-se todos os dias naquela casa pequena em Lisboa.

Agora visito-o todas as semanas. Às vezes ele fala comigo, outras vezes ignora-me completamente. A culpa pesa-me nos ombros como uma manta molhada. Pergunto-me todos os dias se podia ter feito diferente.

Será que algum dia ele vai perdoar-me? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me a mim própria? E vocês… o que fariam no meu lugar?