Quando o Meu Pai se Tornou um Estranho: Entre a Culpa e o Amor

— Não me deixes aqui, filha. Por favor. — A voz do meu pai, trémula, ecoa ainda na minha cabeça, mesmo agora, dias depois de o ter deixado naquele quarto branco, com cheiro a desinfetante e solidão. Sinto as mãos a tremer enquanto tento segurar o volante do carro, mas as lágrimas toldam-me a visão. Não consigo afastar a imagem dele, sentado na cama, com os olhos perdidos, como se procurasse uma saída que eu lhe recusei.

Nunca pensei que chegaria a este ponto. O meu nome é Mariana, tenho 42 anos, sou mãe de dois filhos e filha única de António. Cresci em Lisboa, num bairro onde todos se conheciam pelo nome e onde o meu pai era respeitado por todos. Era serralheiro, mãos calejadas, sorriso fácil. Lembro-me de correr para ele ao fim do dia, quando chegava do trabalho, e ele me levantava no ar como se eu fosse leve como uma pena. “A minha princesa!”, dizia sempre. E eu acreditava.

A minha mãe morreu cedo, tinha eu apenas dez anos. O meu pai fez-se de mãe e de pai, nunca deixou faltar nada. Trabalhava horas a fio, mas nunca faltava à reunião da escola ou ao meu aniversário. Quando tive o meu primeiro desgosto de amor, foi ele quem me abraçou e me disse que eu era forte, que tudo passava. E passou.

Mas agora… agora sou eu quem não consegue passar por cima desta dor. O meu pai começou a mudar há cerca de três anos. Primeiro foram esquecimentos pequenos: o leite ao lume até ferver e entornar, as chaves perdidas. Depois vieram as perguntas repetidas, as histórias contadas vezes sem conta. No início, eu ria-me e dizia-lhe: “Ó pai, já me contaste isso!” Ele encolhia os ombros e sorria, mas os olhos já não brilhavam como antes.

Com o tempo, os esquecimentos tornaram-se perigosos. Uma noite, acordei com o cheiro a gás — ele tinha-se esquecido do fogão aceso. Noutra ocasião, saiu de casa e perdeu-se no bairro onde viveu toda a vida. Os vizinhos começaram a ligar-me: “Mariana, o teu pai está aqui sentado no banco do jardim há horas…” Eu ia buscá-lo e ele olhava para mim como se fosse uma estranha.

Tentei tudo: levei-o ao médico, procurei terapias, mudei rotinas. Mas a doença — chamaram-lhe Alzheimer — foi roubando o meu pai aos poucos. Os meus filhos começaram a ter medo dele quando gritava sem razão ou quando não os reconhecia. O meu marido começou a chegar mais tarde do trabalho para evitar os jantares tensos.

— Mariana, isto não pode continuar assim — disse-me ele um dia, depois de uma noite em que o meu pai tentou sair de casa às três da manhã, convencido de que tinha de ir trabalhar. — Estamos todos a sofrer.

Senti-me sozinha. Os amigos afastaram-se; ninguém sabe lidar com a demência. No trabalho comecei a falhar prazos; os meus chefes olhavam para mim com impaciência disfarçada. Eu própria já não me reconhecia ao espelho: olheiras fundas, cabelo desgrenhado, paciência esgotada.

A decisão foi crescendo dentro de mim como uma doença silenciosa. Falei com assistentes sociais, visitei lares. Todos me diziam que era normal sentir culpa, que às vezes era o melhor para todos. Mas nada me preparou para aquele momento em que tive de lhe dizer:

— Pai… vais ficar aqui uns tempos. Vais ter companhia, vais estar seguro.

Ele olhou para mim como quando eu era pequena e fazia asneiras: com desilusão e tristeza.

— Não me deixes aqui, filha… — repetiu ele.

Saí do quarto antes que ele visse as minhas lágrimas.

Agora acordo todas as noites com o silêncio da casa. Não há passos arrastados no corredor, nem vozes perdidas na sala. Os meus filhos voltaram a brincar sem medo; o meu marido sorri mais vezes. Mas eu… eu não consigo olhar-me ao espelho sem sentir vergonha.

No lar dizem-me que ele está bem cuidado. Às vezes liga-me uma das auxiliares:

— Dona Mariana, hoje o seu pai esteve mais calmo. Falou muito da senhora.

Vou visitá-lo todas as semanas. Levo-lhe bolos que ele já não reconhece, fotografias antigas que ele segura nas mãos sem saber quem são aquelas pessoas sorridentes. Às vezes sorri para mim; outras vezes olha-me como se fosse uma estranha qualquer.

Num domingo chuvoso sentei-me ao lado dele e tentei puxar conversa:

— Lembras-te quando íamos à praia em Carcavelos? Fazíamos castelos de areia…

Ele olhou para mim com um sorriso vago:

— A minha mãe fazia uns bolos tão bons…

Senti um nó na garganta. Já não sou filha; sou apenas uma presença ocasional no mundo dele.

Os vizinhos perguntam por ele:

— Então o senhor António? Já não o vemos…

Eu sorrio e minto:

— Está bem, está num sítio onde cuidam dele.

Mas à noite volto a sentir aquela culpa corrosiva. Penso em todas as vezes que ele sacrificou tudo por mim e pergunto-me se fui fraca por não conseguir fazer o mesmo por ele até ao fim.

A minha tia Rosa ligou-me há dias:

— Mariana, fizeste o que era preciso. Não te martirizes.

Mas como não me martirizar? Como aceitar que o amor também pode ser isto: saber quando já não conseguimos dar mais?

Hoje sentei-me no carro à porta do lar durante meia hora antes de conseguir entrar. Quando finalmente subi ao quarto dele, encontrei-o a dormir profundamente. Sentei-me ao lado da cama e segurei-lhe na mão enrugada.

— Desculpa, pai… — sussurrei.

Ele não acordou. Talvez seja melhor assim.

Agora escrevo estas palavras na esperança de encontrar algum alívio nesta confissão pública. Será que alguém me entende? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me?

E vocês? Alguma vez tiveram de escolher entre cuidar e sobreviver? Como se vive com esta culpa?