Quando o Meu Pai Decidiu Casar Novamente aos Setenta: Um Retrato de Famílias Desfeitas
— Não acredito que vais mesmo fazer isto, pai! — gritei, sentindo a voz tremer, enquanto o meu coração batia descompassado. O silêncio pesado da sala só era quebrado pelo tique-taque do velho relógio de parede da casa dos meus pais, em Vila Nova de Gaia. O meu pai, António, olhava-me com aquele olhar sereno que sempre me irritou nos momentos de crise, como se nada fosse suficientemente grave para abalar a sua paz.
— Filha, já não sou novo. Não achas que mereço um pouco de felicidade? — respondeu ele, cruzando as mãos sobre o colo, sentado na poltrona onde tantas vezes adormeceu a ver futebol.
Havia algo de profundamente injusto naquela frase. A minha mãe, Maria do Carmo, tinha morrido há apenas três anos. O luto ainda era uma sombra espessa sobre a nossa família. E agora, ele queria casar-se com a Dona Lurdes, vizinha do terceiro andar, viúva há mais tempo do que ele próprio.
— Felicidade? E nós? E a mãe? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. O meu irmão mais velho, Ricardo, estava encostado à ombreira da porta, braços cruzados, olhos vermelhos de raiva ou talvez de vergonha.
O meu pai suspirou. — A vossa mãe vai estar sempre comigo. Mas eu não posso passar os anos que me restam sozinho. A solidão é um peso que vocês não imaginam.
Aquelas palavras ecoaram em mim durante dias. Cresci numa casa onde o silêncio era preenchido por discussões abafadas e segredos nunca ditos. A minha mãe era uma mulher reservada, mas eu sabia que havia algo entre ela e o meu pai que nunca compreendi totalmente. Agora, com esta decisão dele, tudo parecia desmoronar-se.
Na semana seguinte, fui visitar a minha tia Rosa, irmã da minha mãe. Precisava de respostas. Sentei-me à mesa da cozinha dela, rodeada pelo cheiro a café acabado de fazer e pelo som distante da televisão.
— Tia, tu sabias disto? — perguntei, quase sussurrando.
Ela pousou a chávena e olhou-me nos olhos. — Sabia que o teu pai não aguentava muito tempo sozinho. Mas há coisas que tu não sabes, filha.
O meu coração apertou-se. — O quê?
A tia Rosa hesitou antes de continuar. — A tua mãe e o teu pai… eles já estavam afastados há muito tempo. Dormiam em quartos separados desde antes do teu casamento.
Fiquei sem palavras. Lembrei-me das noites em que ouvia passos no corredor e portas a fechar-se baixinho. Sempre pensei que fosse normal, que os casais envelhecem e mudam os hábitos.
— Mas… porquê? — perguntei.
Ela suspirou. — O teu pai teve um caso com outra mulher há muitos anos. A tua mãe perdoou-o porque não queria destruir a família. Mas nunca mais foi igual.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como é possível viver uma vida inteira baseada em mentiras? Voltei para casa com a cabeça a latejar e o peito apertado.
No domingo seguinte, jantámos todos juntos em casa do meu irmão Ricardo. A mesa estava posta como nos velhos tempos: bacalhau à Brás e vinho tinto da região. Mas o ambiente era tenso.
— Então é isso? Vais mesmo casar com a Dona Lurdes? — perguntou Ricardo, sem rodeios.
O meu pai assentiu. — Sim. E gostava que vocês aceitassem.
— Não é uma questão de aceitar ou não! É uma questão de respeito pela mãe! — explodi eu.
O meu pai olhou-me com tristeza. — A vossa mãe sabia muito bem quem eu era. E perdoou-me mais do que uma vez. Vocês acham que sabem tudo sobre nós, mas não sabem metade.
A Dona Lurdes entrou na sala nesse momento, trazendo um bolo caseiro nas mãos e um sorriso tímido nos lábios.
— Desculpem interromper… — disse ela, hesitante.
O silêncio caiu como uma pedra. Olhei para ela com desconfiança. Quem era esta mulher para ocupar o lugar da minha mãe? Mas depois reparei nas rugas profundas no seu rosto, nos olhos cansados mas bondosos. Talvez ela também carregasse as suas dores.
Depois do jantar, fui até à varanda apanhar ar. A Dona Lurdes veio ter comigo.
— Sei que é difícil para ti… — começou ela.
— Não faz ideia do quanto — respondi friamente.
Ela suspirou. — Perdi o meu marido há vinte anos. Achei que nunca mais ia sentir nada por ninguém. Mas o teu pai… fez-me rir outra vez.
Olhei para ela e vi sinceridade nos seus olhos. Pela primeira vez senti pena dela — e talvez até do meu pai.
Os meses passaram e o casamento foi marcado para setembro. Eu e o Ricardo quase não falávamos com o nosso pai. Sentia-me traída por ele e pela memória da minha mãe. Mas também percebia cada vez mais que havia feridas antigas na nossa família que nunca tinham sarado.
Na véspera do casamento, encontrei uma carta antiga entre os pertences da minha mãe enquanto arrumava o sótão da casa dos meus pais. Era dirigida ao meu pai:
“António,
Se algum dia decidires seguir outro caminho, espero que sejas feliz. Não guardo rancor; só peço que cuides dos nossos filhos como sempre prometeste.
Com carinho,
Maria do Carmo”
Chorei como há muito não chorava. Percebi então que a minha mãe já tinha feito as pazes com o passado muito antes de nós sequer imaginarmos os problemas deles.
No dia do casamento, sentei-me na última fila da igreja, ao lado do Ricardo. O meu pai parecia feliz pela primeira vez em muitos anos. Quando trocou votos com a Dona Lurdes, vi lágrimas nos olhos dele — lágrimas verdadeiras.
No final da cerimónia, aproximei-me dele e abracei-o pela primeira vez desde a morte da minha mãe.
— Espero que sejas feliz, pai — sussurrei ao ouvido dele.
Ele apertou-me com força e respondeu: — Obrigado por me deixares tentar outra vez.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas a segredos e ressentimentos antigos? Será que algum dia conseguimos realmente conhecer os nossos pais? E vocês… já tiveram de perdoar algo que parecia imperdoável?