Quando o Meu Mundo Ruiu: A Jornada de Laura Entre Sombras e Descobertas
— Laura, precisamos falar. — A voz do Rui tremia, mas os olhos dele estavam frios, quase distantes. Eu sabia. Antes mesmo das palavras saírem, eu já sabia. O cheiro do café queimado na cozinha, o relógio a marcar as dez da noite, e o silêncio pesado da nossa sala — tudo parecia anunciar o fim.
— Diz, Rui. — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o coração a bater tão forte que temi que ele ouvisse.
Ele respirou fundo, desviou o olhar para a janela onde a chuva batia com força.
— Apaixonei-me por outra pessoa. Vou sair de casa hoje.
Não chorei. Não gritei. Não lhe pedi para ficar. Apenas me levantei, fui buscar uma mala ao quarto e comecei a dobrar as minhas roupas. O Rui ficou parado à porta, à espera de uma reação que nunca veio. Talvez esperasse lágrimas ou insultos. Mas eu estava vazia. Tão vazia como aquela casa que, em breve, deixaria de ser minha.
Quando ele saiu, o som da porta a fechar ecoou pela casa como um trovão. Sentei-me no chão do corredor, entre malas e sapatos espalhados, e deixei-me ficar ali. O telefone tocou — era a minha mãe, Dona Amélia, preocupada porque não lhe tinha ligado naquele dia.
— Laura? Está tudo bem? — perguntou ela, com aquela voz doce mas ansiosa.
— O Rui foi-se embora. — respondi, sem rodeios.
O silêncio dela foi mais pesado do que qualquer palavra.
— Vem para casa, filha. Não fiques sozinha.
Mas eu não queria voltar para a aldeia onde cresci, onde todos sabiam tudo de todos e os olhares eram tão afiados como facas. Fiquei em Lisboa, naquele apartamento que agora parecia gigante e frio demais para uma só pessoa.
Os dias seguintes foram um borrão de caixas de cartão, contratos de arrendamento e mensagens de amigos que não sabiam bem o que dizer. A minha irmã, Mariana, apareceu com um bolo de chocolate e um sorriso forçado.
— Ele não te merece, Laura. — disse ela, abraçando-me com força.
Mas eu não sentia raiva do Rui. Sentia-me perdida. Como se tivesse sido arrancada da minha própria vida e atirada para um filme onde não conhecia o guião.
No trabalho, fingia normalidade. Os colegas olhavam-me de lado, cochichavam nos corredores. A Marta, minha chefe, chamou-me ao gabinete.
— Precisas de uns dias? — perguntou ela, com um olhar sincero.
— Não. Preciso de trabalhar. — respondi, agarrando-me à rotina como se fosse um salva-vidas.
À noite, a solidão era insuportável. Oiço os vizinhos a discutir no andar de cima, o som dos talheres na casa ao lado. Sinto inveja dessas pequenas rotinas partilhadas. Começo a sair sozinha: vou ao cinema, sento-me em cafés a observar pessoas felizes ou pelo menos acompanhadas.
Uma noite, decido ligar ao Rui. Não para pedir explicações — já não as quero — mas para ouvir a voz dele e perceber se ainda dói.
— Laura? Está tudo bem? — pergunta ele, cauteloso.
— Só queria saber se estás feliz.
Do outro lado, silêncio. Depois um suspiro.
— Não sei se estou feliz. Mas precisava de tentar outra vida.
Desligo antes que ele diga mais alguma coisa. Sinto-me ainda mais sozinha depois dessa chamada.
Começo a frequentar sessões de terapia. A psicóloga chama-se Dra. Teresa e tem olhos gentis.
— O que sente quando pensa no futuro? — pergunta ela numa das primeiras sessões.
— Sinto medo. E vazio. Como se tivesse desaprendido quem sou sem ele ao meu lado.
Ela sorri com ternura.
— Talvez seja hora de descobrir quem é a Laura sem o Rui.
Aceito o desafio. Inscrevo-me num curso de cerâmica, começo a correr ao fim da tarde no Parque das Nações. Faço novas amizades: a Joana, divorciada há dois anos; o Pedro, viúvo recente; a Sofia, mãe solteira que ri alto demais mas tem olhos tristes.
Partilhamos histórias de perdas e recomeços em jantares improvisados na minha sala ainda meio vazia.
Mas há noites em que o vazio volta com força redobrada. Recebo uma mensagem da minha mãe:
— O teu pai está doente outra vez. Podes vir cá este fim-de-semana?
Sinto-me culpada por ter fugido da aldeia e da família quando eles mais precisavam de mim. No sábado apanho o comboio para o Norte. A casa dos meus pais cheira a sopa quente e lenha a arder na lareira.
O meu pai está mais magro, mas sorri quando me vê:
— A nossa menina voltou!
A minha mãe não resiste:
— Se tivesses ficado cá… talvez tudo fosse diferente.
Engulo em seco. Sei que ela fala do casamento falhado tanto quanto da doença do meu pai.
À noite ouço-os discutir baixinho na cozinha:
— Ela precisa de apoio, Amélia! Não precisamos de lhe lembrar os erros dela!
— Eu só quero que ela seja feliz…
Volto para Lisboa com o coração apertado e uma sensação crescente de não pertencer a lado nenhum: nem à família nem à cidade nem sequer à minha própria pele.
O tempo passa devagar. O Rui casa-se com a tal mulher — vejo as fotos no Facebook partilhadas por amigos em comum. Sinto uma pontada no peito mas já não é dor; é uma espécie de nostalgia amarga pelo que nunca mais será meu.
A Mariana engravida e convida-me para ser madrinha do bebé. Sinto alegria genuína pela primeira vez em meses quando pego no meu sobrinho ao colo pela primeira vez.
Mas as sombras continuam lá: noites insones, crises de ansiedade antes das reuniões importantes no trabalho, medo irracional de nunca voltar a amar ou ser amada.
Num jantar com amigos novos e antigos, alguém pergunta:
— Laura, agora que já passou tanto tempo… voltavas atrás?
Penso na resposta durante longos segundos antes de responder:
— Não sei se voltava atrás… mas às vezes gostava de ter tido coragem para lutar mais por mim antes de tudo ruir.
A conversa muda para outros temas: política, futebol, receitas novas do TikTok. Mas fico presa naquela pergunta durante dias.
A vida segue: faço viagens sozinha pelo interior do país; aprendo a gostar do silêncio; descubro que sou capaz de montar móveis do IKEA sem ajuda (embora nem sempre fiquem direitos). Mas também descubro que há feridas que nunca cicatrizam totalmente — apenas aprendemos a viver com elas.
Hoje olho-me ao espelho e vejo uma mulher diferente: mais forte talvez, mas também mais cética e desconfiada do mundo à sua volta. Sei que nunca serei aquela Laura ingénua e sonhadora que acreditava em finais felizes garantidos só porque sim.
Às vezes pergunto-me: será que todas as jornadas de autodescoberta têm mesmo de acabar com luz? Ou há caminhos que nos levam apenas a conhecer melhor as nossas próprias sombras?
E vocês? Já sentiram que crescer dói mais do que ficar parado no mesmo sítio?