Quando o Meu Marido se Esqueceu de Nós: Entre o Luto e o Esquecimento

— Não podes jantar connosco outra vez, Miguel? — perguntei, tentando conter o tremor na voz enquanto punha a mesa para três, em vez de quatro.

Ele nem me olhou. Estava já a calçar os sapatos, o casaco pendurado no braço, o telemóvel colado ao ouvido. — A Carla precisa de mim, Mariana. O Diogo está com febre e ela não sabe o que fazer. Não posso deixá-los sozinhos agora.

A porta fechou-se antes que eu pudesse responder. O silêncio caiu pesado na sala, só interrompido pelo som dos talheres que a Inês largou na mesa, olhos baixos, boca fechada. O Tomás, mais novo, perguntou baixinho: — O pai vai voltar hoje?

Não soube o que responder. Senti-me pequena, esmagada por uma culpa que não era minha. Desde que o irmão do Miguel morreu naquele acidente de mota, há seis meses, tudo mudou cá em casa. O Miguel tornou-se uma sombra — ou talvez eu é que me tornei invisível.

No início compreendi. A dor era grande, a perda inesperada. O meu cunhado Rui era mais do que irmão; era o melhor amigo do Miguel, o confidente, o parceiro de futebol ao domingo. Quando ele morreu, foi como se um pedaço do meu marido tivesse morrido também. Mas depois veio a Carla, a viúva, e os dois meninos pequenos. E o Miguel sentiu-se responsável por eles — demasiado responsável.

Ao princípio ajudava com as compras, levava os miúdos à escola, tratava dos papéis do seguro. Mas com o tempo, começou a jantar lá quase todas as noites. Passava fins de semana inteiros na casa da Carla. Os nossos filhos começaram a perguntar pelo pai; eu comecei a perguntar por mim mesma.

Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá com um copo de vinho e tentei ligar-lhe. Atendeu ao terceiro toque.

— Miguel, precisamos de falar. — A minha voz saiu mais fraca do que queria.

— Agora não posso, Mariana. O Diogo está a vomitar outra vez e a Carla está em pânico. Falamos depois.

Desligou antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. Fiquei ali sentada, sozinha no escuro, a ouvir o eco da minha própria respiração. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — não contra a Carla ou os meninos, mas contra este vazio que se instalou entre nós.

Os dias passaram assim: eu a segurar tudo em casa, ele ausente em corpo e alma. A Inês começou a fechar-se no quarto; o Tomás fazia birras sem motivo. Um sábado à tarde, quando finalmente consegui convencer o Miguel a ficar em casa para almoçarmos juntos, tentei abordar o assunto.

— Miguel, precisamos mesmo de conversar sobre isto. Sinto que estamos a perder-nos.

Ele suspirou fundo e olhou-me como se eu fosse uma estranha.

— Mariana, não percebes? Eles precisam de mim! O Rui já não está cá! Se eu não ajudar a Carla e os miúdos, quem vai ajudar?

— E nós? Nós também precisamos de ti! Os teus filhos sentem a tua falta! Eu sinto a tua falta!

Ele levantou-se abruptamente.

— Não faças disto uma competição! Não é justo! Eles perderam tudo!

— E nós? O que é que estamos a perder?

Ele não respondeu. Pegou nas chaves do carro e saiu porta fora.

Chorei baixinho para não acordar as crianças. Senti-me egoísta por querer o meu marido de volta quando ele estava apenas a tentar ser bom irmão e bom tio. Mas também me sentia traída — como se o nosso casamento tivesse ficado suspenso no tempo desde aquele telefonema fatídico da polícia.

As semanas passaram e comecei a ouvir rumores na vila. As pessoas falavam — sempre falam — sobre como o Miguel passava tanto tempo com a cunhada. Uma vizinha comentou à minha frente: — Coitada da Mariana… deve ser difícil ver o marido tão dedicado à família do irmão.

Senti vergonha por pensar no mesmo. Comecei a duvidar de tudo: do amor dele por mim, da minha própria importância na vida dele. Uma noite, depois de um jantar silencioso com as crianças, decidi confrontá-lo de vez.

Esperei que chegasse — já passava da meia-noite quando entrou em casa. Estava cansado, olheiras fundas, cheiro a desinfetante das urgências pediátricas.

— Miguel, precisamos mesmo de falar agora. Não aguento mais esta situação.

Ele largou as chaves na mesa e olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Diz então.

— Sinto-me sozinha nesta casa. Os teus filhos sentem-se abandonados. Eu compreendo que queiras ajudar a Carla e os meninos, mas tu esqueceste-te de nós! Não podemos continuar assim!

Ele passou as mãos pelo rosto e sentou-se à minha frente.

— Mariana… eu não sei como fazer diferente. Sinto-me responsável por eles… sinto que estou a falhar ao Rui se não estiver lá todos os dias.

— E achas que não estás a falhar connosco?

Ele ficou em silêncio muito tempo. Depois disse baixinho:

— Tenho medo de perder toda a gente ao mesmo tempo.

Abracei-o então — pela primeira vez em meses senti-o tremer nos meus braços. Chorámos juntos naquela noite; chorámos pelo Rui, pela família dele… pela nossa família também.

Mas nada ficou resolvido ali. Os dias seguintes foram iguais: ele dividido entre duas casas, eu dividida entre compreensão e ressentimento.

Um domingo à tarde, levei as crianças ao parque para espairecerem. Vi ao longe a Carla com os filhos dela — e o Miguel ao lado deles, rindo-se como há muito não fazia comigo ou com os nossos filhos.

A Inês agarrou-me na mão:

— Mãe… achas que o pai gosta mais deles do que de nós?

O coração partiu-se-me ali mesmo. Ajoelhei-me à frente dela:

— O pai está triste… mas nunca vai deixar de gostar de ti ou do Tomás.

Ela não pareceu convencida.

Nessa noite escrevi-lhe uma carta — porque falar já não chegava:

“Miguel,
Sinto falta de ti todos os dias. Sinto falta do homem com quem casei, do pai presente dos nossos filhos. Sei que estás magoado e perdido… mas nós também estamos. Não quero perder-te para sempre para um luto sem fim. Preciso que escolhas estar connosco também.”

Deixei a carta na almofada dele e fui dormir com os miúdos.

Na manhã seguinte encontrei-o sentado à mesa da cozinha com os olhos vermelhos da falta de sono.

— Mariana… desculpa.

Não foi um pedido de desculpas perfeito; não resolveu tudo num instante. Mas foi um começo.

Começámos terapia familiar — juntos e separados. O Miguel aprendeu aos poucos a dividir melhor o tempo; eu aprendi a aceitar que o luto tem muitos rostos e muitos ritmos diferentes. Ainda hoje há dias em que sinto ciúmes da atenção dele à família do irmão… mas também há dias em que ele volta para casa mais cedo só para jantar connosco.

Os miúdos ainda perguntam às vezes porque é que o pai não está sempre ali — mas agora sabem que podem falar sobre isso sem medo de magoar ninguém.

Ainda me pergunto muitas noites: será possível reconstruir uma família quando uma parte dela parece sempre ausente? Ou será que aprendemos apenas a viver com as ausências uns dos outros?

E vocês? Já sentiram que alguém vos esqueceu quando mais precisavam? Como se volta ao amor depois do luto?