Quando o meu marido disse: “Paga renda!” – O desabafo de uma mãe sobre o desmoronar de uma família portuguesa

— Não é justo, Miguel! — gritei, com a voz embargada, enquanto segurava o pequeno Tomás ao colo. Ele olhava para mim com aqueles olhos grandes, sem perceber a tempestade que se abatia sobre nós. — Como podes pedir-me isto agora?

Miguel estava encostado à ombreira da porta da cozinha, braços cruzados, olhar frio. — Não é pedir, é exigir. Se vives nesta casa, tens de contribuir como eu. Não vou sustentar-te mais, nem ao miúdo sozinho.

Senti o chão fugir-me dos pés. Tínhamos acabado de passar por meses difíceis desde o nascimento do Tomás. Eu trabalhava meio tempo numa papelaria do bairro, ganhando pouco mais que o salário mínimo, só para ajudar nas despesas. Sempre achei que era uma fase, que juntos conseguiríamos superar. Mas naquele momento, percebi que estava sozinha.

— Achas mesmo que é justo? Eu cuido do Tomás, faço as limpezas, cozinho… E ainda queres que pague renda? — A minha voz tremia, mas não me calei.

Ele encolheu os ombros. — Cada um tem de fazer a sua parte. Não sou teu pai para te sustentar.

As palavras dele cortaram-me como facas. Lembrei-me dos tempos em que éramos felizes, quando sonhávamos juntos com uma família. O Miguel era carinhoso, fazia-me rir. Mas desde que nasceu o nosso filho, tudo mudou. Ele chegava tarde, irritava-se por tudo e nada, e agora isto.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala escura, com o Tomás a dormir no berço improvisado ao meu lado. Oiço ainda o tic-tac do relógio antigo da minha avó, cada segundo a pesar como uma sentença. Perguntava-me onde tinha falhado. Será que devia ter voltado a trabalhar a tempo inteiro? Será que devia ter pedido ajuda à minha mãe? Mas a verdade é que sempre quis ser independente, não queria dar trabalho a ninguém.

No dia seguinte, tentei falar com ele calmamente.

— Miguel, precisamos conversar. Isto não é vida para ninguém. O Tomás sente tudo… — comecei, mas ele interrompeu-me.

— Não há nada para falar. Ou pagas a tua parte ou procuras outro sítio para viver.

Senti um nó na garganta. A minha mãe sempre me avisou: “Filha, escolhe bem com quem te casas.” Mas eu estava apaixonada demais para ouvir conselhos. Agora sentia-me encurralada.

Durante semanas vivi num limbo. Ia trabalhar de manhã cedo, deixava o Tomás com a vizinha Dona Lurdes — uma senhora idosa que adorava crianças — e voltava para casa ao fim do dia com medo do que me esperava. Miguel mal falava comigo. Às vezes nem jantava em casa. Comecei a desconfiar que havia outra mulher.

Uma noite, depois de deitar o Tomás, ouvi o Miguel ao telefone na varanda:

— Sim, amanhã passo aí depois do trabalho… Não te preocupes, ela não desconfia de nada.

O meu coração parou por instantes. Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto sem conseguir controlar. No dia seguinte confrontei-o.

— Miguel, há outra pessoa?

Ele olhou-me nos olhos sem hesitar.

— E se houver? Achas que tens moral para me julgar? Tu nem consegues pagar metade das contas desta casa!

A humilhação foi total. Senti-me pequena, insignificante. Mas naquele momento algo mudou dentro de mim. Percebi que não podia continuar ali.

Falei com a minha mãe no fim de semana seguinte. Ela morava em Setúbal, numa casa pequena mas acolhedora.

— Filha, volta para casa. Não tens de passar por isto sozinha — disse-me ela, abraçando-me com força.

Demorei dias a tomar coragem. O Miguel continuava indiferente, como se eu fosse apenas mais um móvel da casa. Até que numa manhã de domingo fiz as malas em silêncio enquanto ele dormia no sofá da sala.

Acordei o Tomás devagarinho e saímos sem olhar para trás.

Os primeiros tempos em casa da minha mãe foram difíceis. Sentia vergonha por ter “falhado” no casamento. As vizinhas cochichavam quando me viam chegar com o Tomás ao colo e as malas atrás de mim.

— Olha ali a filha da D. Teresa… Voltou para casa com o menino e tudo! — ouvi uma vez à porta do café.

Mas aos poucos fui ganhando forças. Arranjei trabalho numa loja de roupa no centro comercial e consegui pôr o Tomás numa creche perto de casa. A minha mãe ajudava-me como podia.

Miguel ligou algumas vezes nos primeiros meses — sempre para reclamar do valor da pensão de alimentos ou para dizer que queria ver o filho “quando lhe desse jeito”.

— Não sou tua criada nem tua inimiga — disse-lhe uma vez ao telefone. — Quero apenas o melhor para o Tomás.

Ele riu-se do outro lado da linha.

— O melhor era teres ficado calada e feito o que te pedi.

Desliguei sem responder.

O tempo passou devagarinho mas fui reconstruindo a minha vida. O Tomás crescia saudável e feliz, rodeado pelo carinho da avó e dos tios. Aos poucos deixei de sentir vergonha e comecei a sentir orgulho por ter tido coragem de sair daquela relação tóxica.

Um dia encontrei o Miguel na rua, perto do tribunal onde íamos tratar da regulação das responsabilidades parentais.

— Estás diferente — disse ele, quase num sussurro.

Olhei-o nos olhos e respondi:

— Estou mais forte.

Ele baixou os olhos e afastou-se sem dizer mais nada.

Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Sei que não foi culpa minha — nem de ser mãe, nem de trabalhar pouco tempo fora de casa. A culpa foi dele por não saber ser companheiro nem pai.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas passam pelo mesmo todos os dias? Quantas ficam caladas por medo ou vergonha? Será que algum dia vamos conseguir mudar esta realidade?