Quando o Meu Filho se Tornou um Estranho: Confissões de uma Mãe Lisboeta

— Não me venhas dizer que fizeste tudo por mim, mãe! — gritou o Miguel, com a voz embargada, enquanto a chuva batia forte nas janelas do nosso velho apartamento em Benfica.

Fiquei ali, parada, sentindo o chão fugir-me dos pés. O cheiro do café frio misturava-se ao perfume do detergente barato que usara para limpar a cozinha. O Miguel estava de pé, junto à porta, com a mochila pendurada num ombro e o olhar perdido, como se procurasse uma saída para uma vida que nunca lhe pareceu sua.

— Eu só queria que tivesses uma vida melhor do que a minha — murmurei, quase sem voz.

Ele riu-se, um riso amargo que me cortou mais do que qualquer palavra.

— E achas que foi isso que me deste? Uma vida melhor? Ou só me deste aquilo que tu achavas que era melhor?

As palavras dele ecoaram pela casa. Lembrei-me de quando ele era pequeno e corria pelo corredor, tropeçando nos tapetes e rindo alto. Agora, era um homem feito, mas nos olhos dele via o mesmo menino assustado de há vinte anos atrás.

A nossa história nunca foi fácil. O Miguel nasceu quando eu tinha apenas vinte anos. O pai dele, o António, desapareceu antes de ele nascer. A minha mãe dizia-me sempre: “Filha, vais ver que tudo se resolve.” Mas não se resolveu. Fui mãe e pai, trabalhei em dois empregos — de manhã numa pastelaria em Campo de Ourique, à noite a limpar escritórios no Saldanha. O Miguel cresceu entre as minhas ausências e as promessas de um futuro melhor.

Quando ele tinha dez anos, começou a dar problemas na escola. Chamavam-me constantemente à direção: “O Miguel não presta atenção”, “O Miguel responde mal aos professores”. Eu chegava a casa exausta e tentava ajudá-lo nos trabalhos de casa, mas ele fechava-se no quarto e punha os fones nos ouvidos.

— Mãe, deixa-me em paz! — gritava ele.

Eu chorava baixinho na casa de banho para ele não ouvir. Sentia-me a falhar em tudo: como mãe, como mulher, como pessoa.

Os anos passaram e o Miguel tornou-se cada vez mais distante. Aos dezasseis anos começou a sair com um grupo de rapazes do bairro. Uma noite, a polícia bateu à porta: tinham apanhado o Miguel a grafitar uma parede do metro. Fiquei tão envergonhada que nem consegui olhar para o agente nos olhos.

— Isto é só uma fase — dizia-me a minha irmã Teresa ao telefone. — Ele vai endireitar-se.

Mas não endireitou. Aos dezoito anos saiu de casa sem dizer nada. Só deixou um bilhete: “Mãe, preciso de espaço para respirar.” Fiquei noites sem dormir, imaginando-o perdido pelas ruas de Lisboa.

Dois anos depois voltou. Magro, com olheiras fundas e uma tatuagem nova no braço. Disse-me que precisava de ficar uns tempos até arranjar trabalho. Eu abri-lhe a porta sem hesitar. Fiz-lhe sopa quente e preparei-lhe a cama com os lençóis lavados.

Mas nada voltou a ser como antes. O Miguel estava sempre calado, passava horas no telemóvel ou saía sem dizer para onde ia. Um dia encontrei uma carta da Segurança Social dirigida a ele. Descobri que tinha pedido apoio social sem me contar nada.

— Porque é que não me disseste? — perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros.

— Não queria preocupar-te. Já tens problemas suficientes.

Senti-me inútil. Como podia ajudá-lo se ele não me deixava entrar na vida dele?

As discussões tornaram-se frequentes. Tudo era motivo para conflito: o dinheiro da renda, as tarefas da casa, até o simples facto de eu lhe perguntar se já tinha comido.

— Tu controlas tudo! — acusou-me uma noite. — Não sabes respeitar o meu espaço!

— Eu só quero o teu bem! — respondi-lhe, desesperada.

Ele saiu porta fora e só voltou de madrugada. Fiquei sentada no sofá até ouvir a chave na fechadura.

No dia seguinte, tentei falar com ele calmamente:

— Miguel, eu sei que não sou perfeita. Sei que errei muitas vezes… Mas tudo o que fiz foi por amor.

Ele olhou-me com lágrimas nos olhos:

— Às vezes o teu amor sufoca-me, mãe.

Essas palavras ficaram gravadas em mim como uma ferida aberta.

Depois disso, as coisas pioraram. O Miguel arranjou um trabalho precário num call center e começou a trazer amigos para casa sem avisar. Uma noite ouvi barulho na sala e fui ver: estavam todos a beber cerveja e a fumar dentro de casa.

— Isto não é um hostel! — gritei eu.

O Miguel levantou-se num salto:

— Se não gostas, posso ir embora outra vez!

Os amigos saíram apressados e ficámos os dois sozinhos na sala desarrumada.

— Porque é que me odeias tanto? — perguntei-lhe em voz baixa.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:

— Eu não te odeio… Só não sei como te amar sem me perder a mim próprio.

Naquela noite chorei até adormecer no sofá.

Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. Até que chegou aquela noite chuvosa em que tudo explodiu.

— Não me venhas dizer que fizeste tudo por mim! — repetiu ele, agora mais calmo mas com os olhos vermelhos de raiva e tristeza.

Eu sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as minhas mãos envelhecidas.

— Talvez tenha feito tudo errado… Talvez tenha confundido amor com medo de te perder…

O Miguel aproximou-se devagar e pousou a mão sobre a minha.

— Mãe… Eu só queria sentir que confias em mim.

Ficámos ali em silêncio durante minutos que pareceram horas. Senti o peso dos anos, das escolhas erradas, das palavras não ditas.

Hoje escrevo esta história sentada na mesma sala onde tantas vezes discutimos e fizemos as pazes. O Miguel já não vive comigo; arranjou um pequeno quarto em Arroios e liga-me de vez em quando para saber se preciso de alguma coisa. A nossa relação ainda tem feridas por sarar, mas há esperança nas pequenas conversas e nos gestos tímidos de carinho.

Às vezes pergunto-me: onde termina o amor de mãe e começa o direito do filho a ser livre? Será possível amar sem sufocar? E vocês, já sentiram este medo de perder quem mais amam?