Quando o meu avô se afastou de nós: A história de uma família desfeita

— Não quero ouvir mais nada sobre isso, Inês! — a voz do meu pai ecoou pela sala, cortando o ar como uma lâmina. Eu tinha acabado de perguntar, pela enésima vez, porque é que o avô António já não vinha aos nossos almoços de domingo. O silêncio que se seguiu foi pesado, quase sufocante. A minha mãe olhou para mim com olhos tristes, mas não disse nada. Senti-me pequena, perdida naquele mar de segredos e ressentimentos.

Cresci numa aldeia perto de Santarém, onde toda a gente se conhecia e as famílias eram unidas. O meu avô António era o pilar da nossa família. Depois da escola, corria para a sua casa, onde a avó Rosa me esperava com bolinhos de canela e ele me ensinava a jogar dominó. Lembro-me do cheiro a terra molhada no quintal, das histórias que ele contava sobre os tempos difíceis da sua juventude, e do modo como ria alto, fazendo tremer as janelas.

Mas tudo mudou no inverno em que a avó Rosa adoeceu. Foi rápido demais. Um mês depois do diagnóstico, já estávamos todos vestidos de preto na igreja da aldeia. O avô António parecia ter envelhecido dez anos em poucas semanas. Os seus olhos perderam o brilho e as mãos tremiam quando me abraçava. Durante meses, tentei animá-lo, mas ele estava ausente, perdido num mundo só dele.

Foi então que Dona Maria, a vizinha do lado, começou a aparecer mais vezes. Primeiro, trazia sopa quente ou um bolo acabado de fazer. Depois, começou a cuidar do quintal do avô, a ajudá-lo nas compras. A minha mãe dizia que era bondade, mas o meu pai franzia o sobrolho sempre que ela entrava em casa.

Um dia, cheguei à casa do avô e encontrei-os sentados lado a lado no sofá. Riam-se baixinho, como dois cúmplices. Senti um nó na garganta. Quando me viram, Dona Maria levantou-se apressada e saiu pela porta das traseiras. O avô tentou sorrir-me, mas havia algo estranho no seu olhar.

As semanas passaram e os rumores começaram a circular pela aldeia. “O António anda feito com a Maria”, ouvi uma vizinha cochichar à porta da mercearia. A minha mãe evitava comentar, mas o meu pai estava cada vez mais irritado. Uma noite, ouvi-os discutir na cozinha:

— Ele não perdeu tempo! Mal a tua mãe partiu, já estava de braço dado com aquela mulher! — dizia o meu pai, a voz carregada de mágoa.
— Ele está sozinho… Precisa de companhia — respondia a minha mãe, tentando acalmar os ânimos.

Pouco tempo depois, veio a notícia: o avô António ia casar-se com Dona Maria. Não houve festa nem convite para nós. Fiquei devastada. No domingo seguinte, fui à casa dele com um bolo que tinha feito sozinha. Bati à porta e foi Dona Maria quem abriu.

— O teu avô está ocupado — disse ela secamente, sem sequer me deixar entrar.

Ouvi a voz dele ao longe:
— Quem é?
— É só a Inês — respondeu ela.

Fiquei ali parada, sentindo-me invisível. Voltei para casa com o bolo intacto e lágrimas nos olhos.

A partir desse dia, o avô deixou de aparecer nos nossos almoços. No Natal, enviou-nos um cartão assinado apenas por ele e Dona Maria. O meu pai rasgou-o sem ler. A minha mãe chorou baixinho na cozinha enquanto eu tentava compreender como tudo podia mudar tão depressa.

Os meses transformaram-se em anos. O avô António tornou-se uma figura distante, quase um estranho. Às vezes via-o na rua com Dona Maria; ele desviava o olhar ou acenava timidamente. Senti raiva dele por nos ter deixado assim, por ter escolhido outra família em vez da nossa.

A tensão entre os meus pais aumentou. O meu pai culpava a mãe por não ter sido mais firme com o avô; ela culpava-o por não tentar compreender o sofrimento do próprio pai. Eu sentia-me presa no meio deste turbilhão de acusações e silêncios.

Um dia, decidi confrontar o avô. Esperei por ele à saída da missa e abordei-o:

— Avô… porque é que já não queres saber de nós?

Ele olhou-me nos olhos e vi ali uma tristeza profunda.
— Inês… eu nunca deixei de vos amar. Mas às vezes as pessoas fazem escolhas para sobreviver à dor. A tua avó era tudo para mim… Quando ela partiu, eu perdi-me. A Maria ajudou-me a encontrar algum sentido outra vez.

— Mas nós também precisávamos de ti! — gritei-lhe, incapaz de conter as lágrimas.

Ele tentou tocar-me no ombro, mas eu recuei.
— Eu sei… — murmurou ele — Mas não soube fazer melhor.

Voltei para casa ainda mais confusa e magoada. Durante muito tempo guardei rancor do avô e da Dona Maria. Os jantares de família tornaram-se frios; cada um evitava falar sobre ele. A minha mãe adoeceu pouco depois — dizem que foi tristeza acumulada — e eu tive de crescer depressa demais.

Anos mais tarde, recebi uma chamada do hospital: o avô estava muito doente e queria ver-me. Hesitei antes de ir; parte de mim queria castigá-lo pelo abandono, outra parte ansiava por um último abraço.

Quando entrei no quarto, ele sorriu-me como nos velhos tempos.
— Inês… desculpa tudo o que te fiz passar.

Sentei-me ao lado dele e segurei-lhe a mão.
— Avô… só queria ter-te tido por perto.

Ele fechou os olhos e chorou baixinho. Ficámos assim durante horas, em silêncio, até que ele adormeceu para sempre naquela noite.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que podia ter feito algo diferente? Será que algum dia conseguimos realmente perdoar quem nos magoa? Talvez nunca saiba as respostas certas… Mas sei que as famílias são feitas de amor e também de falhas — e que às vezes é preciso perder para perceber o valor do que tínhamos.